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terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Os ratos de Pavlov

Ratos que sobem em mesas até podem ser condicionados, mas não deixam de ser roedores!

Paulo Moreira Leite


Quando eu tinha a idade dos meninos e meninas que morreram na balada em Santa Maria, uma tragédia igual à que ocorreu no último sábado seria usada para massacrar a liberdade da juventude.


Com seus reflexos condicionados, que permitem a um ser humano ficar idêntico aos ratos de laboratório de Pavlov – nome muito em voga na época – eles diriam que o caso demonstrava que essa juventude não tem eira nem beira, não merece a confiança dos pais, pois passam o dia fumando maconha, ouvindo rock e pensando em dormir com a namorada.


Os tempos mudaram mas é preciso reconhecer que os ratos de pavlov permanecem. Seu alvo, agora, é o universo Lula-Dilma.


É um pouco difícil achar culpados diretos no PT, desta vez. A tragédia tem muito a ver com questões de prefeitura, e o prefeito de Santa Maria, reeleito em 2012 com mais de 54% dos votos, é do PMDB. Complica bater no sujeito, que, além de tudo, tem fama de bom político, com um histórico de atitudes respeitáveis em sua passagem por Brasília.

Nós sabemos que, do ponto de vista pavloviano, esse tipo de questão não importa. Importa o alvo. Mas desta vez não dá para bater direto e começar a procurar relações entre as tragédias. Com cartilagem, em vez de ossos, os ratinhos conseguem atravessar as menores brechas, não é mesmo?


Lembram-se do desastre da TAM? Teve até passeata para denunciar o governo federal como culpado. Quando a causa do acidente apareceu... os ratinhos deram um jeito de atacar um assessor do presidente em vez de pedir desculpa.

Dessa vez, o pavlovianismo acha ruim que Lula e sua mulher, Marisa, colocaram no Facebook uma nota de pesar pela tragédia.

Claro: é oportunismo, é intromissão. Um ex-presidente, o mais popular da história brasileira, só pode ter intenções maléficas quando coloca uma nota na internet.


Vamos combinar que, salvo amigos e parentes próximos, todo mundo poderia ser chamado de oportunista no caso.


Um observador frio pode dizer que principalmente os jornalistas estão querendo faturar com a tragédia, pois ela ajuda a aumentar a audiência e a vender jornais. Seria estúpido, mas juro que tem gente que pensa assim.


As emissoras de TV costumam ganhar audiência e prestígio com esse tipo de cobertura. Pesquise a história das grandes emissoras e garanto que vai encontrar um episódio desses, que marcou a história de todas elas. Não é vergonhoso. Não é oportunismo.


Quantos blogueiros não conquistaram audiência no tsunami da Ásia?


Um político como Mário Covas deixou de ser um engenheiro de Santos como tantos outros por causa de uma enchente em sua cidade natal. Ele mostrou-se à altura de suas responsabilidades como cidadão e, a partir de então, conseguiu apoio popular para sua carreira política, que o levou ao Senado, ao governo de São Paulo e a uma candidatura a presidente da República.


Não vejo nada de errado na solidariedade de Lula nem de ninguém. Acho natural. Como achei natural que Zeca Pagodinho desfilasse por Xerém a bordo de seu triciclo motorizado. Só achei um pouquinho exagerada a reação favorável. Será que isso tem a ver com seus patrocinadores?


E tenho certeza de que, para desgosto de nossos ratos de Pavlov, a solidariedade vai se ampliar nos próximos dias. Outros políticos vão se manifestar. É absurdo ficar em silêncio e cruzar os braços numa hora dessas.


É possível inverter o raciocínio. Em vez de achar que Lula está usando a tragédia para se promover, pode-se dizer que os ratos de Pavlov querem tirar proveito da tragédia para atacar o ex-presidente. Ou seja: os oportunistas de verdade são eles.


A maldade dos ratinhos de Pavlov não tem limites. Compreende-se. Eles trocaram a consciência pelos reflexos condicionados.



Paulo Moreira Leite
Desde janeiro de 2013, é diretor da ISTOÉ em Brasília. Dirigiu a Época e foi redator chefe da VEJA, correspondente em Paris e em Washington. É autor do livro A mulher que era o general da casa -- Histórias da resistência civil à ditadura.




domingo, 27 de janeiro de 2013

Contra o desejado

Reynaldo, Nunes, Nelsinho, Merval,  o Tucídides da UFSCar,  Danuza e outros que devem fazer a prova do ENEM

Janio de Freitas

Os juros em alturas imorais eram acusados de impedir a retomada efetiva do crescimento e a capacidade da indústria de competir com a produção estrangeira. Os juros foram baixados. E as correntes que os culpavam entregaram-se a intensas e extensas críticas à sua redução. A energia cara era há muito acusada de obstruir o crescimento econômico e a capacidade de competição da indústria brasileira. Foi reduzida em 32%, um terço, para a produção industrial. E as correntes que a culpavam se entregam a criticá-la e desacreditá-la.

Esse jogo de incoerências proporciona noções importantes para os cidadãos, mas de percepção dificultada pela próprio jogo.

Está evidente na contradição das atitudes o quanto há de política no que é servido ao público a respeito de assuntos econômicos. Na maioria dos assuntos dessa área, o direcionamento é predominantemente determinado por política, e não pela objetividade econômica.

É assim por parte dos dois lados. Mas não de maneira equitativa. Os economistas mais identificados com o capital privado do que abertos a problemas sociais, ou a projeções do interesse nacional, fazem a ampla maioria dos ouvidos e seguidos pelos meios de comunicação.

É esse o desdobramento natural da identificação ideológica e política e das conveniências mútuas, entre empresas capitalistas e "técnicos" do capitalismo. Mas não necessariamente, como supõem certas interpretações ditas de esquerda, um desdobramento forçado aos jornalistas. Também entre os comentaristas e editores há, é provável que em maioria, identificação com os economistas do capital. E, em certos casos, com o capital mesmo. O que vai implicar tratamento político -de apoio ou de oposição- a decisões econômicas e respectivos autores.

Foi a essas críticas políticas que, a meu ver, Dilma Rousseff respondeu junto com a comunicação do corte maior no preço da energia. Nada a ver com o lançamento de campanha reeleitoral que lhe foi atribuído pelo presidente do PSDB, deputado Sérgio Guerra, logo seguido pelos porta-vozes, assumidos ou não, do PSDB e dos remanescentes do neoliberalismo.

Do alto de sua aprovação pessoal e da aprovação ao seu governo, o que de menos Dilma Rousseff precisa é precipitar a disputa eleitoral. Essa necessidade não é dela, é dos oposicionistas -como se viu, há pouco, Fernando Henrique propondo o início imediato de um périplo eleitoreiro de Aécio Neves pelo país afora.
Dilma Rousseff fez a promoção de seu governo como Fernando Henrique fazia do seu, e todos os presidentes fizeram e fazem. A afirmação de que falou como candidata leva a uma pergunta: se não a favor do seu governo e da novidade que lança, nem há algo grave, como é que um/uma presidente deve falar?

A redução do preço da energia e a queda dos juros agravam o aturdimento da oposição representada pelo PSDB. Se nela não brota nem uma ideiazinha nova, para contrapor à queda de juros, desoneração da folha de pagamento, redução do IPI, ampliação do crédito para casa própria, só lhe resta dizer que isso não passa de um amontoado de medidas de um governo sem rumo. Mas não ver nesse amontoado, ainda que para criticar, uma coerência e um sentido de política a um só tempo industrial e social, aí já é problema para quem organiza o Enem.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Revelando os bastidores da sociedade brasileira.


Eis aí uma questão fundamental para a cidadania.

Entidades que monitoram proprietários do Brasil pedem contribuição
Qual é a estrutura de poder econômico dos grupos privados que atuam no país? Quais são os atores que acumulam maior poder nesta estrutura, e qual a relação entre os mesmos?

Qual o grau de influência desta estrutura de poder, invisível, sobre as decisões do Estado quanto ao rumo do desenvolvimento e as políticas econômicas?
Como o Estado se relaciona e alimenta esta estrutura de poder e quais as contrapartidas desta relação para o bem-estar da sociedade?

É com o objetivo de responder a estas e a outras perguntas que construímos o ranking “Proprietários do Brasil”.

O ranking foi elaborado a partir da construção de um sistema de informação inédito que mede o poder econômico não apenas por meio da receita destas empresas mas também do controle, da propriedade sobre ações ordinárias (com direito a voto) que uma empresa possui de outras empresas e o quanto isso aumenta sua capacidade de influenciar os investimentos do Estado brasileiro.
(clique aqui para entender como se calcula o IPA - Índice de Poder Acumulado).

Não se pode falar de um verdadeiro Estado de Direito Democrático se a sociedade não conhecer as estruturas de poder econômico do setor privado e suas influências nas orientações de estratégia econômica e de desenvolvimento do Estado brasileiro. Ainda mais quando sabemos que as ações de empresas e bancos de maior capital acumulado, por estarem comprometidos com o lucro, impactam negativa e brutalmente na vida social, econômica, cultural e ambiental do país.

O Ranking Proprietários do Brasil mostra que o capitalismo brasileiro tem rosto, nome, sobrenome e endereço. O ranking expõe o controle da propriedade destes grupos por poucas empresas e pessoas, através de estruturas complexas e ramificadas de participações societárias. O ranking traz as intrincadas redes e cadeias de conglomerados, holdings, instituições financeiras, empresas especuladoras e outros CNPJs que nada produzem, chegando finalmente aos controladores últimos por trás das empresas que fazem parte de nosso dia-a-dia, os verdadeiros donos do Brasil.

Queremos contribuir para dar visibilidade e concretude à indecente concentração de renda e poder que marca a vida social e econômica do país, justificada pelo consenso criado e propagado de que tais empresas e seus donos produzem riquezas para o Brasil, através da geração de empregos e por levarem o “desenvolvimento” e o “progresso” para os locais em que atuam.

Almejamos que o ranking Proprietários do Brasil forneça informações que auxiliem a luta das comunidades e pessoas atingidas pelas ações danosas dos poderosos grupos econômicos hegemônicos no Brasil, seja pelo desrespeito às condições de vida e trabalho dignas, seja pela destruição ambiental. Também temos a pretensão em subsidiar as instituições de pesquisa interessadas em desvelar a estrutura do poder. Concebemos o ranking como instrumento de luta concreta dos diversos movimentos sociais e organizações por mais democracia no nosso país. Neste sentido, o ranking fornece informações e revela de que forma o capital está organizado, estruturado e agindo no país e como suas ações impactam no cotidiano da população brasileira. Com esta ferramenta é possível, por exemplo, identificar os verdadeiros agentes por trás de violações de direitos humanos e dos passivos sociais e ambientais.

As conexões entre o Estado e os grupos privados, forjadas historicamente, alimentam uma elevada concentração de poder econômico, como revela o ranking. Ele nos mostra que por detrás de famosos nomes de empresas e do emaranhado de cadeias de controle há pessoas. Pessoas que as lideram e planejam suas ações, e que, em muitos casos, são apoiadas fortemente pelo Estado Brasileiro, através de financiamentos subsidiados, como, por exemplo, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES); e benefícios fiscais e tributários por governos municipais, estaduais e federal. Por meio do ranking identifica-se também a presença do Estado na estrutura societária dos grupos privados através de participações das empresas estatais e de seus fundos de pensão no capital de muitos destes grupos.

Temos o direito, como cidadãs e cidadãos brasileiras/os, de exigir a democratização do uso dos recursos públicos e seu controle social, tendo acesso a informações sobre onde e como os mesmos são aplicados.

A atual cortina de fumaça que recobre a estrutura de poder econômico no país, normalmente isenta estes que se portam como proprietários do Brasil de qualquer responsabilidade sobre os danos sociais, econômicos, culturais e ambientais gerados pelas ações das empresas que controlam. O ranking, ao expor estes atores, busca contribuir com a democratização da economia, com a transparência da relação entre Estado e mercado e com a responsabilização dos “proprietários do Brasil”.

A produção do ranking é apenas o primeiro passo na construção do portal proprietariosdobrasil.org.br como um espaço coletivo para o compartilhamento de informações, análises e denúncias sobre quem são e como atuam os controladores do poder econômico no país. O Instituto Mais Democracia e a Cooperativa EITA convidam a todos que compartilham dos princípios e objetivos que orientam este trabalho a se aliarem, desde já, na construção deste espaço. De nossa parte, o próximo passo será constituir, por meio do financiamento colaborativo, uma plataforma online interativa sobre os proprietários do Brasil, com filtros que facilitem o acesso ao banco de dados do ranking exposto neste portal.

Precisamos de seu apoio! Para ver o ranking, acesse: http://www.proprietariosdobrasil.org.br

Para apoiar e receber em troca materiais da campanha e o CD do El Efecto, acesse:
http://catarse.me/pt/portalproprietariosdobrasil

Corpo e exorcismo no século XXI


Filme romeno imagina convento católico abalado por nudez e repressão, e convida a refletir sobre poder, sexualidade e fundamentalismos

Por José Gerado Couto*, do blog IMS

Um grande filme entra em cartaz em São Paulo sob o risco de ser esmagado pelos blockbusters infanto-juvenis e pelos “filmes do Oscar”. Estou falando de Além das montanhas, do romeno Cristian Mungiu, um dos destaques da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2012.

Escrevi com entusiasmo sobre ele na ocasião, e de lá para cá minha admiração não diminuiu. Trata-se, para dizer sucintamente, de um drama de exorcismo ambientado numa remota aldeia da Romênia. Para ser mais exato, num convento católico ortodoxo onde não há luz elétrica nem utensílios modernos. É lá que se reencontram duas jovens amigas e talvez ex-namoradas, Alina (Cristina Flutur) e Voichita (Cosmina Stratan), depois que a primeira passou um tempo na Alemanha trabalhando de garçonete.


Esse mundo aparentemente parado no tempo, em que um padre severo domina de modo absoluto as ações e os pensamentos de um rebanho de mulheres cobertas da cabeça aos pés, sofre um abalo profundo com a chegada de Alina. Decidida a arrancar Voichita dali e a levá-la com ela para a Alemanha – o que equivaleria a trazê-la da Idade Média para o século XXI –, a moça não se submete às regras do convento e passa a ser tratada como uma possuída. A própria Voichita se dilacera entre o amor terreno pela amiga e a fé (no padre e em Deus).

A fúria do corpo

O acerto fundamental de Mungiu está em centrar no corpo de Alina, e não no terreno abstrato das ideias, o embate entre desejo e opressão. É a nudez da moça que desestabiliza a fé, é a imprevisibilidade do seu corpo que perturba a ordem. Reprimido, o desejo se transfigura em doença, a razão em loucura. O corpo se contorce, não cabe em si, transborda em saliva, sangue, urina e fluidos diversos.



Também em sua linguagem expositiva o filme é movido por esse embate. Os longos planos fixos e contemplativos da vida cotidiana são sacudidos por movimentos bruscos de câmera na mão quando Eros se desencadeia como uma fera desembestada. É todo um mundo que entra em convulsão.

Em Cannes o filme ganhou os prêmios de roteiro e atriz, dividido entre suas duas protagonistas, mas ficou fora da disputa do Oscar de produção estrangeira, daí o risco de passar despercebido. Convém assistir logo.

Para quem julgar que o tema de Além das montanhas é antigo, ou que se circunscreve a grotões atrasados do planeta, vale lembrar duas coisas. Primeiro, a facilidade com que líderes evangélicos – e fundamentalistas de toda ordem – acusam os que não se enquadram em seus preceitos de estarem possuídos pelo demônio. Segundo, a violência que se abate contra os que colocam a sexualidade na linha de frente da luta contra o poder político, religioso e econômico, como mostram a prisão das componentes do Pussy Riot na Rússia e a inaudita brutalidade contra as moças do grupo Femen que protestavam contra o BBB num shopping de São Paulo. O corpo, ao que tudo indica, ainda é o grande campo de batalha.

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*José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O PT e uma sensação que as pesquisas não medem

Imagem do antigo estádio de vila Euclides: cenário de uma revolução!

por Luiz Carlos Azenha, no Viomundo


Numa recente palestra na França, aquela em que, ao cobrir, a Folha tirou do contexto palavras do ex-presidente, Lula fez uma declaração de deixar a esquerda brasileira arrepiada, sobre o que ele vê como objetivos do trabalhador (a) brasileiro (a), quiçá mundial: um homem/mulher bonito (a) para casar, uma casinha, um carrinho e um computador/ipad/ipod.

Dado o tom descontraído em que foi feita a declaração, não devemos levá-la ao pé da letra. Porém, fica clara a dimensão material da “ideologia” do lulismo. Lula não se referiu no discurso à necessidade de conquistar o poder para atender àqueles objetivos que havia elencado, talvez um cacoete dos que não querem deixar o jogo muito explícito diante do adversário de classe. Mas ficou subentendido, já que quem discursava era um ex-presidente de dois mandatos.

Lula fez o nome no estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo.

Por obrigação de ofício, conheci a cidade operária nos anos 80. Não propriamente nas grandes greves do ABC, nem na história subsequente do Partido dos Trabalhadores. Eu era um repórter de TV iniciante, na TV Globo de Bauru, e vinha a São Paulo cobrir férias de outros repórteres.

Depois que os metalúrgicos inventaram “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”, a emissora deixou de enviar repórteres mais graduados para cobrir os eventos no ABC. Sofreram os de escalão médio, que nos contavam histórias passadas. Eu era peão. Fui lá em outras circunstâncias, gravar o Globo Cidade, boletim sobre problemas comunitários.

Estive lá outras vezes, mas neste sábado passei algumas horas em São Bernardo por conta do jogo entre o time local e o Santos, na abertura do Campeonato Paulista.

Lula estava em seu camarote com dona Marisa e cartolas, o que diz muito sobre como o Brasil mudou nos últimos 30 anos. Havemos de concordar que boa parte das mudanças se deveu ao Partido dos Trabalhadores, com seus erros e acertos, virtudes e defeitos.

A mídia corporativa, fiel aos ditames neoliberais do PSDB, mesmo sem querer contribuiu muito com o PT: o partido que ocupa o Planalto há dez anos, que administra estados e centenas de prefeituras, nunca sentiu-se confortavelmente no poder, por conta das críticas diárias e muitas vezes injustas.

E isso, de certa forma, faz bem, já que suscita os debates internos que podem levar o partido a avançar. Ou não.

O fato é que o estádio da Vila Euclides, hoje Estádio Primeiro de Maio, está um brinco. São Bernardo passou por uma transformação completa. A cidade operária é hoje uma cidade de classe média.

Cerca de 15 mil pessoas no estádio e eu, com um amigo, no meio da torcida do Bernô.

Gente de todo tipo, como a gente sempre encontra nas arquibancadas de um estádio.

Muitos superlativos: “O presidente tá aí hoje” (em São Bernardo, Lula não é ex); “tá na SporTv, tem gente do mundo inteiro olhando”; “o Samuel vai acabar com o Neymar”.

Todas as jogadas em que o craque do Santos se aproximava da lateral, as pessoas corriam com os celulares para fotografar (a caminho do Ipad, diria Lula).

Na arquibancada, dezenas de meninos com o corte de cabelo e os brincos do Neymar, não por serem santistas, mas porque Neymar é um produto de seu tempo (e, lembrem-se, ascendeu na vida).
As crianças ao meu lado eram de uma família muito, muito simples.

Estavam todas claramente encantadas com o espetáculo, desde os fogos de artifício da abertura até as malandragens do Neymar. Os pais complementaram a festa com salgadinhos e refrigerantes. Nem a chuva os espantou: a família comprou capas para todos, a 5 reais a unidade.

Apesar da derrota, sairam todos alegríssimos do estádio pelo simples fato de terem participado.

Quem conhece o Brasil, sabe que isso nem sempre foi possível.

Nas minhas viagens pelo país, sempre me encanta ver a alegria espontânea de quem antes não podia e hoje pode. Comprar carne, andar de avião, comprar celular com três chips (para escapar das tarifas altíssimas entre operadoras), comprar a Honda Biz ou Pop.

Fico fascinado especialmente pela liberdade geográfica: quem antes não podia sair de sua região, hoje pode. De moto ou de avião. O cara que economizava na passagem de ônibus hoje vai ao Ibirapuera com a família, aos domingos. Quando o bilhete único do Haddad estrear, preparem-se: o que o cara antes gastava no transporte vai bombar o comércio e o lazer.

O Merval provavelmente se arrepia com tudo isso, mas o fato é que desconhecer estes acontecimentos, em si, turva as análises políticas que ele produz. Estamos falando de algo que escapa ao Ibope ou ao Datafolha.

Por mais que a gente despreze esta ascensão material, ela se traduz também numa sensação de pertencimento que nenhuma pesquisa de opinião é capaz de medir.

Pertencimento equivale, sem ser, a uma libertação de classe.

Faz alguns anos fui ao Quênia fazer uma reportagem sobre a família de Barack Obama.
Ficamos em um hotel de Kisumu, na margem do lago Vitória.

Num momento de folga, fui ao bar do hotel, o mais chique da cidade. Fiquei de papo com o barman. A certa altura ele me contou que até hoje recebia visita de gente vinda dos confins do interior queniano. Aquele hotel tinha sido famoso durante o colonialismo britânico e era segregado, ou seja, exclusivo dos brancos. Tinha a primeira piscina de Kisumu, onde negros não se banhavam.

Alguns visitantes, segundo ele, não consumiam absolutamente nada: vinham para ter certeza de que, agora, podiam entrar. Vinham, olhavam e iam embora, provavelmente concluindo que, sim, os tempos tinham mudado.

Era a certeza de que agora pertenciam. Tinha a sensação, ainda que falsa, de que estavam plenamente integrados à sociedade.

Dividiam os ídolos (o zagueiro Samuel), os líderes (o Lula vem ao estádio comigo), os bens físicos (eu também posso ser explorado por preços caríssimos de refrigerantes) e imateriais (vou botar a foto do Neymar no Face e tirar uma onda desse moleque folgado que eu só via na Globo).

O grande problema da oposição brasileira é que, gostem ou não do PT, o partido está associado a esta sensação compartilhada hoje por milhões de brasileiros.

Colocado de forma simples, o PT pode até ser aquele homem (mulher) feio (a), mas foi o único (a) que, no baile, me tirou para dançar.

Transtornos globais a médio prazo

Metamorfoses contemporâneas


Por Immanuel Wallerstein


Fazer previsões a curto prazo (para um ou dois anos) é um jogo tonto. Há demasiadas guinadas e giros no mundo real político / econômico / cultural. Mas podemos tentar fazer afirmações plausíveis para o médio prazo (uma década ou mais) baseados num marco teórico trabalhável, combinado com uma análise sólida e pragmática de tendências e limitações.
O que é que sabemos do sistema-mundo em que estamos vivendo? Primeiro de tudo, que se trata de uma economia-mundo capitalista, cujo princípio básico é a incessante acumulação de capital. Segundo, que é um sistema histórico que, como todos os sistemas (desde o universo como um todo até os mínimos sistemas nanoscópicos), tem vida. Surge à existência, vive sua vida “normal”, de acordo com regras e estruturas que cria e, logo, em certo ponto, o sistema se afasta demais do equilíbrio e entra em uma crise estrutural. Terceiro, que nosso atual sistema-mundo tem sido um sistema polarizador, em que existe uma brecha que cresce, constante, entre os Estados e no interior dos mesmos.

Agora estamos em uma crise estrutural assim, e temos estado nela por uns 40 anos. Continuaremos nesta crise por outros 20 a 40 anos. Este é o tempo aproximado que dura uma crise estrutural em um sistema histórico social. O que ocorre em uma crise estrutural é que o sistema bifurca-se, o que essencialmente significa que emergem dois modos diferentes para finalizar a crise estrutural quando coletivamente se “elege” uma das alternativas.

A principal característica de uma crise estrutural é uma série de flutuações caóticas fortíssimas de tudo -os mercados, as alianças geopolíticas, a estabilidade das fronteiras estatais, o emprego, as dívidas, os impostos. A incerteza, no curto prazo, se torna crônica. E a incerteza tende a congelar a tomada de decisões econômicas, o que, por certo, piora a situação.

Eis aqui algumas das coisas que podemos esperar no médio prazo. Quase todos os Estados enfrentam, e seguirão enfrentando, um aperto entre a redução de arrecadações e o incremento dos gastos. O que quase todos os Estados estão fazendo é reduzir os gastos de duas formas. Uma tem sido cortar (ou inclusive eliminar) muitíssimas das redes de segurança construídas no passado para ajudar as pessoas comuns a lidar com as múltiplas contingências que enfrenta. Mas há um segundo modo também. Quase todos os Estados estão cortando as transferências de dinheiro às entidades estatais subordinadas - as estruturas federativas, se o Estado é uma federação, e os governos locais. O que isto faz é simplesmente transferir a necessidade de incrementar impostos a estas unidades subordinadas. Se isso se mostra impossível, podem ir à falência, o que elimina outras partes das redes de segurança social (notavelmente, as pensões).

Isso tem um impacto imediato nos Estados. Por um lado, os debilita, conforme mais e mais unidades buscam cindir-se se o considerarem vantajoso economicamente. Mas por outro lado, os Estados são mais importantes que nunca, conforme as populações buscam refúgio nas políticas protecionistas (manter nossos empregos, não os seus). As fronteiras estatais sempre mudaram. Mas há a perspectiva de que mudem com muito maior frequência agora. Ao mesmo tempo, as novas estruturas que vinculam os Estados existentes (ou suas subunidades) - como a União Europeia (UE) e a nova estrutura sul-americana (Unasul) - continuarão florescendo e desempenhando um papel geopolítico crescente.

Os malabarismos entre os múltiplos lugares do poder geopolítico se tornam muito mais instáveis em uma situação em que nenhum desses lugares estará em posição de ditar regras interestatais. Os Estados Unidos foram eventualmente um poder hegemônico com pés de barro, mas que segue sendo poderoso o suficiente como para provocar danos por torpeza. A China parece ter a posição econômica emergente mais forte, mas é menos forte do que ela mesma ou os outros pensam. O grau no qual se aproximam Europa ocidental e Rússia segue sendo uma pergunta aberta, e segue estando na agenda em ambos os lados. O modo com que a Índia jogará as suas cartas continua sendo algo que, em grande medida, a própria Índia ainda não decidiu. O que isto significará para as guerras civis como a da Síria até agora tem a ver com como os interventores estrangeiros se cancelam mutuamente e como os conflitos se organizam, mais do que nunca, em torno de grupos de identidade fratricidas.

Reiterarei minha postura largamente arguida. Ao final da década veremos alguns realinhamentos importantes. Um é a criação de uma estrutura confederada que vincule o Japão a uma China (reunificada) e a una Coreia (reunida). O segundo é uma aliança geopolítica entre esta estrutura confederada e os Estados Unidos. Terceiro é uma aliança de facto entre a Unão Europeia e a Rússia. O quarto é a proliferação nuclear a uma escala significativa. Um quinto é um protecionismo generalizado. O sexto é uma deflação mundial generalizada, que pode assumir duas formas - seja uma redução nominal dos preços ou inflações rampantes, que têm a mesma consequência.

Obviamente, estes não são resultados felizes para quase ninguém. O desemprego mundial aumentará, não vai cair. E as pessoas comuns sentirão os beliscões de forma muito severa. As pessoas já mostraram que estão prontas para responder lutando de múltiplas formas, e esta resistência popular crescerá. Encontrar-nos-emos no meio de uma vasta batalha política para determinar o futuro do mundo.

Aqueles que têm riqueza e privilégios hoje não se sentarão, sem fazer nada. Será mais e mais claro para eles que não podem assegurar seu futuro através do sistema capitalista existente. Buscarão implementar um sistema que não se baseie em um papel central do mercado, mas sim em uma combinação de força bruta e enganação. O objetivo chave é assegurar que o novo sistema garanta a continuação de três características principais para o atual sistema - hierarquia, exploração e polarização.

Por outro lado, haverá forças populares por todo o mundo que buscarão criar uma nova classe de sistema histórico, um que ainda não existiu, baseado em uma democracia relativa e uma relativa igualdade. É quase impossível prever o que isso significará em termos das instituições que o mundo poderia criar. Aprenderemos na construção deste sistema, nas décadas vindouras.

Quem ganhará esta batalha? Ninguém pode prever. Será o resultado de uma infinidade de ações nanoscópicas empreendidas por uma infinidade de nano-atores em uma infinidade de nano-momentos. E em algum ponto a tensão entre as duas soluções alternativas se inclinará definitivamente a favor de uma ou outra. Isto é o que nos dá esperança. O que cada um de nós fizer em cada momento sobre cada um dos pontos imediatos conta. Alguns chamam isso de “efeito borboleta”. O bater das asas de uma borboleta afeta o clima de um extremo ao outro no mundo. Neste sentido, hoje todos somos pequenas borboletas.


domingo, 20 de janeiro de 2013

Ciências com fronteiras: a exclusão das Humanidades pelo MEC

A esquerda: o território da Ciência. A direita, as humanidades.

por Alyson Freire

Como um veículo idealizado por cientistas sociais, e, mais importante, feito a partir dos conhecimentos aprendidos nas Ciências Sociais, a Carta Potiguar não poderia deixar de se manifestar a propósito da suspensão da liminar que determinava a inclusão dos cursos da área de Ciências Humanas no programa Ciência Sem Fronteiras do Ministério da Educação (MEC). A decisão do Tribunal Federal da 5ª Região e o entendimento do MEC sobre a natureza doPrograma devem ser não apenas lamentadas e repudiadas, mas, como convém a postura das Humanidades, analisadas e discutidas. Muito embora, bastasse para verificar o déficit em Humanidades no Brasil confrontar a realidade social do país e as percepções enviesadas e estreitas sobre esta, e, assim, constatar, com certa melancolia, os enormes desafios e incompreensões que existem acerca das questões públicas.

A indignação gerada não pode, porém, embotar a reflexividade exigida para produzir, de uma só vez, um entendimento claro do que está em disputa no CsF e, sobretudo, uma crítica aos pressupostos tácitos que o presidem. Afinal de contas, as Ciências Humanas notabilizam-se precisamente por constituírem um tipo de trabalho intelectual cujo cerne consiste em sua capacidade ímpar de elaborar autorreflexão crítica, a partir da qual a sociedade pode dispor das ferramentas para pensar a si mesma como problema e fenômeno humano, aberto e contingente, e, desse modo, entender por meio de que processos sociais e históricos as coisas se tornaram de uma forma e não de outra.

A posição do MEC e a interpretação da Justiça não são simplesmente neutras e técnicas. São seletivas e prescritivas na medida em que expressam, por um lado, interesses sociais, políticos e econômicos, e, por outro, concepções e valores acerca das classificações das ciências e o papel destas no interior de um projeto determinado de sociedade e desenvolvimento.

A disputa a propósito de quem está ou não autorizado a participar do Ciências sem Fronteiras ou que áreas devem ser priorizadas no financiamento de bolsas, intercâmbios e estágios no exterior são reveladoras a respeito da visão de desenvolvimento que o Governo do PT e outros setores abraçam e cultivam. Priorizar as Ciências Naturais e Exatas significa privilegiar uma determinada concepção de desenvolvimento, que é certamente a concepção de certos grupos de interesse. O que está jogo em toda essa polêmica resume-se a questão de definir os parâmetros pelos quais a sociedade deve ser organizada e estruturada para atingir os tão almejados fins do desenvolvimento. Quer dizer, que caminhos o país e a vida das pessoas devem trilhar para alcançar um estágio elevado de bem-estar humano, segurança, conforto e liberdade.

Mas que ideia de desenvolvimento é esta adotada no Ciências Sem Fronteiras? Ora, uma ideia redutora e estreita de “desenvolvimento” que o identifica prioritariamente com crescimento econômico e progresso tecnológico puro e simples. Nesse sentido, desenvolvimento ou sociedade desenvolvida é sinônimo da elevação do PIB, da capacidade produtiva e criativa de indústrias e empresas, aumento da renda per capita e da disponibilidade de recursos humanos hiperqualificados do ponto de vista técnico, etc.. Sem satisfazer esses indicadores e critérios uma sociedade não pode considerar-se desenvolvida, tal qual entende esta concepção tecnicista de progresso.

É no interior dessa visão de desenvolvimento, que a Ciência e suas divisões adquirem um lugar e um papel determinados. Dentro desse paradigma, as Ciências Naturais e Exatas são consideradas as mais aptas para fomentar as condições de desenvolvimento. Elas são indutoras de progresso porque seus resultados e inventos podem ser diretamente aplicados e apropriados pelo Estado e pelas empresas, segundo, obviamente, os interesses estratégicos de dominação política, militar, social e econômica. Por isso, a elas reservam-se as melhores oportunidades de recursos e investimentos.

O maior investimento na formação e qualificação de recursos humanos no campo das ditas “ciências duras” ganha prioridade sobre todos os demais por conta do comprometimento do Governo do PT e das instituições de apoio e fomento com uma determinada visão de progresso, assim como pela força dos interesses estratégicos que o Governo, seguindo o modelo técnico-desenvolvimentista e sua política de coalizão, assume para manter sua governabilidade – esse comprometimento pode ser observada no conjunto de outras disputas em que o Governo está envolvido, como por exemplo a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.

As Ciências Humanas são, desse modo, escamoteadas porque seu saber e formação não se coadunam tão intimamente com esta concepção de desenvolvimento e com os interesses dos atores hegemônicos (Estado e Mercado) neste processo. Elas seriam “ciências moles”, imprecisas e teóricas, e o progresso necessita de “ciências duras”, fálicas e masculinas, as únicas que, como diz o qualificativo, são capazes de serem suficientemente viris e ativas para fecundar o desenvolvimento numa sociedade. Como se pode deduzir, a analogia com o machismo e androcentrismo na ideia de “ciências duras e moles” não é nada gratuita e acidental – o que reforça o argumento de a ciência existe num contexto de valores, representações e repertórios culturais.

A dificuldade e os preconceitos que as Ciências Humanas sofrem para obter o devido reconhecimento de seu estatuto e valor científico é bem mais o resultado de avaliações políticas e culturais cristalizadas e compartilhadas em instituições de poder dominantes (Estado e Mercado) do que o produto de avaliações científicas e epistemológicas sérias. O valor e as classificações das ciências ganham o seu sentido particular e hierarquizante em razão das representações sociais que se tem acerca da potencialidade delas no interior de concepções culturais específicas sobre progresso, desenvolvimento e bem-estar humano, assim como pelo papel que elas cumprem numa divisão de trabalho mais ampla sob a finalidade de atingir os objetivos produtivistas e quantitativos do crescimento econômico – PIB, renda per capita, etc..

Restringir o programa CsF aos estudantes oriundos da área tecnológica e biomédica é uma decisão política, no sentido de que o Governo, o mercado e as instituições de fomento enxergam nessas áreas os subsídios técnicos e humanos capazes e necessários de alavancar o desenvolvimento econômico de uma sociedade a partir da criação de tecnologia e da formação de quadros hiperqualificados para o mercado e suas necessidades.

O problema, portanto, não reside na questão de medir qual ciência é superior ou mais relevante do que a outra, o problema está na concepção de desenvolvimento abraçada e partilhada pelo MEC, e flagrantemente expressa noCiência Sem Fronteiras. A exclusão das Ciências Humanas do CsF é resultado de um modo tecnocrático e desenvolvimentista de conceber o progresso de uma sociedade. Nesta concepção de desenvolvimento, o sucesso de uma sociedade é medido pela elevação das riquezas que um país produz mais do que a forma e o grau com que ele a distribui; mais pela quantidade e exploração de recursos que ela capaz de realizar do que pela qualidade dos serviços públicos básicos que oferece; mais pela industrialização do que pelo impacto que ela causa nas condições ambientais e de existência das pessoas; mais pelo progresso tecnológico e quadros qualificados que possui do que pelo grau de participação política e social das pessoas na vida pà ºblica.

O que temos de criticar veementemente é esta visão que privilegia unilateralmente indicadores quantitativos e economicistas em detrimento de outros indicadores qualitativos e sociais ligados ao que o economista Amartya Sen chamou de expansão das “liberdades substantivas” e das capacitações para o agir autônomo das pessoas – o que envolve, segundo Sen, desde as liberdades políticas e econômicas básicas ao desenvolvimento de condições para evitar subnutrição e a mortalidade precoce e capacidades de promoção da autonomia e participação ativa das pessoas na vida política da sociedade (educação, liberdade de expressão, etc.).

Se pensarmos como economista indiano e ganhador do Nobel de economia, defendendo que o desenvolvimento é essencialmente um processo de expansão das liberdades reais de que as pessoas desfrutam, então as Ciências Humanas possuem um papel central e pertinente como “indutoras” das condições de desenvolvimento. Os obstáculos na expansão das liberdades reais e na efetivação das capacidades humanas são resultados, em larga medida, de fenômenos humanos, isto é, de processos, instituições e estruturas sociais que modelam o destino das pessoas, suas chances de vida e oportunidades.

Ora, se não podemos falar em sociedade desenvolvida se nela vigoram, de maneira persistente e seletiva, dominações, desigualdades e restrições que impactam enormemente o exercício dos direitos e o desenvolvimento das capacidades pessoais, então, a contribuição das Ciências Humanas é indispensável e inestimável para reverter tal quadro. O entendimento, com clareza e profundidade, de fenômenos humanos, como a reprodução da pobreza, da violência, da ineficiência institucional, os conflitos entre grupos, a exploração e injustiça econômica, os dramas interpessoais, a desigualdade e marginalização social, a privação de direitos em razão de estigmas e preconceitos, entre tantos outros, somente é possível mediante um consistente conhecimento e pesquisas pertencentes ao campo das Ciências Humanas. Esses conhecimentos podem ser convertidos em políticas públicas e reformas políticas. No entanto, a contribuição das Ciências Humanas não se esgota em oferecer informações úteis que servirão de matéria para políticas sociais.

As Ciências Humanas proporcionam um exercício intelectual formidável de desvelamento e questionamento das suposições tácitas e ponto de vistas morais em que se fundamentam determinadas visões de mundo – como a noção de desenvolvimento aqui criticada. Revelar as opacidades subjetivas e causais do comportamento e pensamento humanos, situando-os histórica e socioculturalmente, é o seu principal mérito. O esclarecimento que as Ciências Humanas proporcionam é um esclarecimento não tanto da ordem da previsão e do controle dos fenômenos mas da reflexividade dos sujeitos sobre si mesmos, suas vidas, crenças e ações – o que pode servir tanto numa escala individual quanto, também, numa escala coletiva para governos comprometidos com reformas e movimentos sociais engajados na luta por transformações sociais.

Portanto, por mais enervante que seja a exclusão das Ciências Humanas do CsF, em vez do ressentimento, a crítica deve alimentar-se do comprometimento público que as Ciências Humanas possuem com o avanço e fortalecimento da emancipação humana em todos os seus sentidos. Este comprometimento obedece uma convicção intelectual e ética iniludível acerca do papel do conhecimento das Humanidades em geral e das CH em particular para esclarecer, de um lado, os mecanismos e estruturas sociais responsáveis que dificultam alcançar uma situação de maior emancipação, liberdade e dignidade compartilhadas e, de outro, revelar os pressupostos tácitos que governam as tentativas políticas de superação e solução desses mesmos mecanismos e estruturas.

De uma maneira decisiva, podemos afirmar que as Ciências Humanas contribuem com o desenvolvimento de uma sociedade na medida em que elas podem fornecer, a um só tempo, um conhecimento aplicável e reflexivo sobre os fenômenos e questões que esta sociedade busca resolver e, também, acerca das implicações dos valores, compreensões e aspirações em nome dos quais esta sociedade ou grupos dela pensam e agem. O investimento em conhecimentos orientados para a explicação dos fatos humanos e para o esclarecimento dos valores que as pessoas e grupos assumem e praticam em suas percepções e aspirações é um fator indispensável para qualquer sociedade que se pretenda desenvolvida num sentido mais pleno da palavra. Engenharias e tecnologias ajudam a construir e fazer crescer um país, mas não produzem por si mesmas compreensões capazes de impulsionar um processo de autoentendimento sobre o país, seus dilemas e ambições.

A exclusão reiterada das Ciências Humanas no programa Ciências sem Fronteiras abre mais um flanco para reflexão e crítica a propósito dos rumos que o Governo tem adotado como diretrizes do projeto nacional de desenvolvimento. Apostar numa concepção de desenvolvimento que abre mão de “pensar e entender o Brasil” para além das categorias econômicas mais redutoras e autoreferenciadas é bem mais do que um equívoco ultrapassado, é antes e fundamentalmente um equívoco bastante perigoso e ameaçador.


Alyson Freire é professor de Sociologia. Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais - UFRN. Editor e integrante do Conselho Editorial da Carta Potiguar. 

sábado, 19 de janeiro de 2013

As Oposições e suas Batalhas

Os mares revoltos onde navegam as oposições!


por Marcos Coimbra, na CartaCapital


2013 mal começou e a nova batalha das oposições, partidárias e extraparlamentares, já está em pleno andamento. Se a primeira quinzena de janeiro transcorreu assim, imagine-se o restante do ano.

É fácil perceber o que as move e aonde pretendem chegar.

A espetacularização do julgamento do “mensalão” foi feita com o único objetivo de desconstruir a imagem do PT no plano moral. O que buscavam era marcar o partido e suas principais lideranças com o estigma da corrupção, a fim de erodir suas bases na sociedade.

Só quem acredita em histórias da carochinha levou a sério a versão de que a imprensa oposicionista tinha o desejo sincero de renovar nossos costumes políticos e promover a “limpeza das instituições”. Seus bons propósitos são tão verdadeiros quanto os de Pedro Malasartes, personagem de nosso folclore famoso pelo cinismo e a falta de escrúpulos.

Por maiores que tenham sido seus esforços, obtiveram, no entanto, sucesso apenas parcial na empreitada, como vimos quando as urnas da eleição municipal foram abertas. Os resultados nacionais e algumas vitórias, como a de Fernando Haddad, em São Paulo, mostraram que os prejuízos sofridos pelo PT em decorrência do julgamento ficaram bem aquém do que calculavam.

Essa frustração as levou ao ponto em que estão hoje. De um lado, a insistir no moralismo e na tentativa de transformar o “mensalão” em assunto permanente da agenda nacional. Querem forçar o País a continuar a debatê-lo indefinidamente, como se tivesse a importância de temas como a democracia, o desenvolvimento econômico, o meio ambiente e a educação.

De outro, a diversificar os ataques, assestando as baterias em direção a novos alvos, procurando atingir a imagem administrativa da presidenta e do governo Dilma. Por extensão, de todo o PT.

Não chega a ser um projeto original. Nas disputas politicas, nenhuma novidade há em acusar os adversários, simultaneamente, de corrupção e incompetência. Em dizer que, além de se apropriar de recursos públicos, não sabem governar, e que não há, portanto, qualquer razão para apoiá-los, sequer o argumento do “rouba, mas faz”.

Neste início de ano, o discurso das oposições, em especial da armada midiática, é afirmar que o PT rouba e não faz.

Atravessamos os primeiros quinze dias de 2013 como se vivêssemos uma crise gravíssima e difusa, como se o Brasil estivesse na iminência da paralisia total. Quem acompanhou o noticiário só ouviu falar em problemas, gargalos e decepções.

É o inverso do que ela costuma fazer em janeiro, quando a maioria de seus leitores está de férias e pensa em outras coisas. Ao invés das habituais reportagens amenas sobre a Musa do Verão e os preparativos para o Carnaval, tudo que publicam tem tom catastrófico.

Os mais radicais não escondem a satisfação com o fraco desempenho do PIB em 2012 e os problemas de abastecimento elétrico em diversas regiões. Ficaram algo tristes com a modestas tragédias naturais do começo do ano. Por enquanto, o que lhes resta é torcer por calamidades espetaculares.

“Pibinho”, crise de gestão, apagão, desindustrialização, inflação, desemprego, falta de ar refrigerado no Santos Dumont, a disparada no preço do tomate, tudo vai mal no Brasil, segundo a mídia oposicionista. Por culpa de Lula, que “não soube aproveitar a sorte” e “desperdiçou a herança de FHC”, e de Dilma, que é “centralizadora”, “estatista” e “antiquada”.

Batem em tudo que veem e, se não veem, inventam. Nos últimos dias, até o Bolsa-Família entrou na linha de mira dos “grandes jornais”. Sem falar na raiva contra Hugo Chávez, a quem parecem detestar somente por ser amigo dos petistas - visto que nunca dedicaram aversão igual aos governantes de direita do continente.

São como os lutadores de boxe que não possuem em seu repertório um soco capaz nocautear o adversário. Lembram os pesos-moscas enfezados do Oriente, que brigam desferindo a esmo diretos, cruzados, jabs e uppercuts - além de, vez por outra, golpes baixos.

Funciona?

Até agora, pode-se dizer que não. Apesar do coro negativista, as pessoas comuns continuam satisfeitas com o País e o governo, e esperançosas em relação ao futuro. Em recente pesquisa da Vox Populi, 68% dos entrevistados disseram esperar que a situação de suas famílias venha a melhorar nos próximos seis meses, contra 2% que temem que piore. E o mais provável é que os otimistas é que tenham razão.

Esta semana, outro patético esforço de mobilizar os “indignados” conseguiu colocar dez cidadãos na Avenida Paulista. Portavam cartazes pedindo “Basta!”. Ficaram falando sozinhos.

Uma coisa é conseguir a adesão de meia dúzia de ministros do Supremo, a maioria já alinhada com a oposição. Outra é encher as ruas. Isso, ela nunca soube fazer.
E não consegue aprender.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A cultura do estupro ronda a Índia

Manifestação contra violência sexual patriarcalista, em Nova Délhi
Vandana Shiva sustenta: violência contra mulheres cresce em seu país porque machismo ancestral combina-se agora com lógica econômica que valoriza apenas o lucro e despreza trabalho da maioria das mulheres

No IHU

Até 16 de dezembro de 2012, Jyoti Singh Pandey era apenas uma estudante universitária de 23 anos a caminho de casa após uma sessão de cinema em Nova Délhi. Naquela noite, porém, foram-lhe brutalmente roubados o próprio corpo, a identidade, os direitos humanos. Estuprada por seis homens em um ônibus em movimento, com requintes sórdidos de tortura com uma barra de metal, a jovem indiana resistiu por 13 dias após a agressão – e morreu no dia 29 de dezembro. A Índia tremeu com enérgicas manifestações e protestos que se alastraram por diversas cidades do país.

Nessa semana, cinco homens foram acusados oficialmente perante a Justiça indiana – três se declararam inocentes. O sexto suspeito é um adolescente de 17 anos, que será julgado em uma corte juvenil. Enquanto os julgamentos se desenrolam a portas fechadas, resta a lembrança de Jyoti Singh Pandey como símbolo para as milhares de mulheres violentadas diariamente na Índia. “Jyoti detonou uma revolução social”, diz a filósofa indiana Vandana Shiva.

Nascida em Dehradum, Vandana colaborou com organizações ambientalistas nos quatro cantos do mundo – África, Ásia, Américas e Europa. Atualmente vive em Nova Délhi, onde lidera o Research Foundation for Science, Technology and Ecology. Autora de Staying Alive: Women, Ecology and Survival in India (1988), Biopiracy (1997) e Water Wars (2002), entre outros, a filósofa mescla movimentos políticos alternativos, ideais ambientalistas, críticas econômicas, biotecnologia e bioética. Desse amálgama teórico saem suas principais ideias para defender os direitos das mulheres mundo afora.

“Se permaneço firme hoje é porque antes de mim outras pessoas lutaram contra a discriminação contra as mulheres”, diz. “Meu avô iniciou a primeira escola para garotas na área rural de Uttar Pradesh. E queria transformá-la em uma faculdade. No estilo do Mahatma Gandhi, ele fez greve de fome para que a universidade fosse reconhecida pelo governo. Morreu nesse sacrifício. Um dia depois de sua morte, a instituição conquistou status de faculdade”, ela conta. “E minha mãe e meu pai lutaram contra a discriminação de castas. Assim adotaram o nome neutro ‘Shiva’ para renunciar à identidade de casta deles. Minha mãe viveu uma vida tão independente quanto meu pai. Foi um exemplo que tornou a igualdade de gêneros uma condição vital para mim”, diz.

Ecofeminista premiada com o Right Livelihood Award – considerado o Nobel da Paz alternativo –, Vandana escreveu um ensaio em tributo a Jyoti Singh Pandey no dia 29 de dezembro. Para pensar a questão feminina (e a brutalidade da violência contra as mulheres no país), a autora extrapola as fronteiras culturais e leva a discussão aos campos da economia e da política.

Eis extratos do texto.

Perversas tradições

A violência contra as mulheres é tão antiga quanto o patriarcalismo na Índia. O patriarcalismo tradicional estruturou nossas visões de mundo e nossas mentes. Moldou o universo sociocultural indiano na dominação sobre as mulheres, negando-lhes a humanidade e o direito à igualdade. No entanto, essa dominação se intensificou e se tornou mais perversa recentemente, tomando formas mais brutais, como a morte de Jyoti Singh Pandey, em Nova Délhi, e o suicídio de uma garota de 17 anos, também vítima de estupro coletivo, em Chandigarh. Casos de estupro e violência contra as mulheres dispararam nos últimos anos. O National Crime Records Bureau registrou 10.068 casos de estupro em 1990, número que saltou para 16.496 em 2000. Em 2011, foram 24.206 estupros – um incrível aumento de 873% desde 1971, quando a instituição começou a registrar esses casos. Assim, Nova Délhi emergiu como a capital do estupro na Índia, respondendo por 25% dessas ocorrências. Até que se faça justiça por nossas filhas e nossas irmãs violentadas, o movimento contra a violência não pode parar. E, enquanto intensificamos nossa luta por justiça, também precisamos questionar: Por que os casos de estupro cresceram 240% desde 1990, época em que as novas políticas econômicas foram introduzidas no país? Há uma relação entre os crimes contra as mulheres (mais intensos, mais brutais) e a economia (imposta, injusta e insustentável)? Acredito que sim."

O auge da intempérie

Não estou sugerindo que a violência contra as mulheres comece com as políticas econômicas neoliberais. Estou consciente do preconceito de gêneros arraigado na sociedade indiana tradicional. Permaneço firme hoje, pois, antes de mim, outras pessoas lutaram contra as exclusões contra mulheres e crianças. Meu avô sacrificou sua vida pela igualdade feminina. Minha mãe foi uma feminista antes de a palavra sequer existir. Mas quero dizer que a violência contra as mulheres tomou uma nova e mais perversa forma, a partir do cruzamento de duas linhas: as estruturas patriarcais tradicionais e as estruturas capitalistas emergentes. Precisamos pensar nas relações entre a violência do sistema econômico e a violência contra as mulheres. Para ilustrar: intempéries sempre aconteceram. Mas como mostram o superciclone Orissa, os ciclones Nargis e Aila, os furacões Katrina e Sandy, a intensidade e a frequência desses desastres se transformaram com as mudanças climáticas. Na mesma linha, nossa sociedade sempre discriminou crianças meninas. Mas e a epidemia de feticídio feminino? E o desaparecimento de 30 milhões de garotas nem nascidas? Levaram essa discriminação a novas proporções. À violência mais brutal e mais perversa – e relacionada aos processos alavancados pelo modelo econômico."

Dois pesos, duas medidas

O modelo econômico míope, com foco no “crescimento”, desconsidera a contribuição das mulheres para a economia. Quanto mais argumenta, ad nauseum, sobre o “crescimento inclusivo” e “inclusão financeira”, mais o governo exclui as contribuições femininas para a economia e a sociedade. Isso porque, de acordo com os modelos econômicos patriarcais, a produção para subsistência é considerada “não produção”. Do valor em “não valor”, do trabalho em “não trabalho”, do conhecimento em “não conhecimento”, essas transformações são engendradas pelo mais poderoso número que dita nossas vidas: o Produto Interno Bruto, uma ideia patriarcal – que muitos comentaristas passaram a chamar de “problema interno bruto”. Medidas assim se ancoram na ideia que se os produtores consomem o que eles mesmos produzem… Eles não produzem nada, de fato, porque ficam fora das fronteiras da produção. Esses modelos são construções políticas que, na sua própria dinâmica, excluem os ciclos de produção regenerativa e renovável. Por isso, todas as mulheres que produzem para sustentar suas famílias e crianças, suas comunidades, são tratadas como “não produtivas” e “inativas” economicamente. Quando a economia é confinada ao mercado, a economia autossustentável é vista como uma lacuna. A desvalorização do trabalho das mulheres é o resultado natural de um modelo de produção construído pelo patriarcalismo capitalista. Ao se restringir aos valores da economia de mercado, esse modelo ignora a importância (e o valor econômico) de duas esferas vitais para a sobrevivência humana: a economia sustentável e a economia da natureza. Nesses modelos alternativos, o valor econômico mede como são preservadas a vida humana e a vida na Terra. Isto é, nesse sistema, a moeda é a vida – não o dinheiro ou o preço de mercado."

A cultura do estupro

Esse modelo patriarcal distancia as mulheres das fontes naturais das quais dependem – a terra, a floresta, as sementes e a biodiversidade. Reformas econômicas ancoradas na ideia de crescimento ilimitado num mundo limitado só podem ser mantidas com os poderosos arrebatando recursos dos vulneráveis. O “roubo” de recursos, essencial para o tal crescimento, cria uma cultura do estupro: o estupro da Terra e das mulheres. Esse crescimento só é “inclusivo” por incluir mais e mais números nesses círculos de violência. Noutras vezes, destaquei repetidamente que o estupro da Terra e o estupro das mulheres estão intimamente relacionados, tanto metaforicamente quanto materialmente. Primeiro, por moldar visões de mundo. Segundo, por moldar a vida cotidiana das mulheres. Uma vez vulneráveis economicamente, as mulheres se tornam mais vulneráveis a outras formas de violência, como a agressão sexual. Isso nós podemos observar durante uma série de audiências públicas sobre o impacto das reformas econômicas nas mulheres. Esses encontros foram organizados pela National Comission on Women e pela Research Foundation for Science, Technology and Ecology."

Na raiz do abismo

Ainda sobre as relações entre a violência e o modelo econômico. As reformas nos levaram à subversão da democracia e à privatização do governo. O governo comenta a economia como se nada tivesse a ver com a política e o poder. Ora, os sistemas econômicos influenciam os sistemas políticos. É imposto um modelo econômico moldado de acordo com interesses políticos de uma classe e de um gênero em particular. É uma convergência de poderes econômicos e políticos que agravam as desigualdades e acirram a distância entre a classe política e o desejo da sociedade que, teoricamente, eles deveriam representar. Isso está na raiz da ruptura entre políticos e a sociedade, tal como vivenciamos durante os protestos desde o estupro coletivo de Nova Délhi. Pior ainda, temos uma classe política alienada que teme seus próprios cidadãos. Isso justifica o crescente uso da força policial para esmagar manifestações civis não violentas, como testemunhamos em Délhi. Ou na tortura de Soni Sori, em Bastar (presa em 2011, a ativista disse que foi torturada e violentada sexualmente por policiais de Chhattisgarh). Ou na prisão de Dayamani Barla, emJhakhand (presa em 2012, a jornalista foi acusada de perturbar a lei e a ordem ao liderar protestos em anos anteriores). Ou nas milhares de agressões a comunidades que lutam contra a usina nuclear em Kudankulam. Por isso, os políticos se cercam de seguranças VIP, desviando a polícia de seus deveres importantes, como proteger mulheres e cidadãos comuns."

Commodity geral

Além disso, o modelo econômico atual transforma tudo em commodities. Tudo, incluindo as mulheres. As sementes, a terra, a comida, as mulheres, as crianças. Alavancado pela liberalização econômica, tudo se transforma em commodities. Isso degrada os valores sociais, acirra o patriarcalismo e intensifica a violência contra as mulheres. Nós paramos uma reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, com o slogan: “Nosso mundo não está à venda”. Essa é a ideia. Sistemas econômicos influenciam valores culturais e sociais. E uma economia de commodities cria uma cultura de commodities, onde tudo tem um preço. E nada tem valor."

Entre quereres e poderes

Assim, a cultura do estupro é um sintoma das mudanças decorrentes da economia neoliberal. Precisamos de auditorias sociais para as políticas econômicas em nossos tempos. Se tivéssemos uma auditoria sobre a corporativização do setor de sementes, 270 mil fazendeiros não teriam sido empurrados ao suicídio na Índia. Se tivéssemos uma auditoria sobre a corporativização da agricultura, não teríamos um em quatro indianos faminto, uma em três mulheres mal nutrida, uma em duas crianças definhando devido a severa desnutrição. Talvez assim, a Índia não fosse a “república da fome”, tal como escrevera Utsa Patnaik (economista marxista da Jawaharlal Nehru University). Vítima do estupro coletivo em Nova Délhi, Jyoti Singh Pandey detonou uma revolução social. Uma revolução que devemos apoiar, aprofundar, ampliar. Devemos exigir rápida e efetiva justiça para as mulheres, com leis novas e tribunais mais ágeis para condenar os responsáveis por esses crimes. Devemos ver o continuum das diferentes formas de violência contras as mulheres: o feticídio feminino, a exclusão econômica, as agressões sexuais. Precisamos dar continuidade ao movimento por reformas sociais para garantir a igualdade e a segurança das mulheres. Isso deve ser construído nos pilares fundados com o movimento de independência e o movimento feminista nos últimos 50 anos. E, enquanto fazemos tudo isso, precisamos mudar o paradigma em vigor. Economia e sociedade não estão isoladas. As reformas nesses dois campos não podem mais ficar separadas. Para dar fim à violência contra as mulheres, também precisamos mudar. Mudar de uma economia capitalista violenta para economias sustentáveis e pacíficas, que respeitem as mulheres e, no limite, a própria Terra.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Ler a Hegel


G. Hegel

O Lenin, no seu rigor bolchevique, exagerava quando dizia que quem não leu aLogica do Hegel não compreende o marxismo. Ele queria dizer que, sem uma compreensão plena da dialética, perderia-se o núcleo básico que articula o pensamento do Marx. Lukács confirmaria isso ao dizer, um pouco mais tarde, que a única coisa ortodoxa no marxismo é a dialética. Na aplicação da dialética a distintos objetos e momentos encontra-se a atualidade do marxismo.
De fato, a passagem da lógica aristotélica – a logica da identidade – à lógica dialética é o momento mais revolucionário da historia da filosofia. Hegel é, ao mesmo tempo, o momento culminante da filosofia clássica e o seu fim, a impossibilidade, pela introdução da historia, da existência de sistemas filosóficos, que pretendiam proclamar verdades sistemáticas, eternas.
Como toda sua geração, Marx buscou fazer a cerimonia de luto do pensamento do Hegel e, assim, seu pensamento aparece como materialista, como anti-idealista. A própria afirmação de ter virado a dialética do Hegel “de cabeça pra baixo”, favorece essa visão.
Mas, apoiado em Hegel, Marx se voltou duramente contra o empirismo, contra a visão que toma a realidade imediata como a realidade. Para o pensamento dialético, nas palavras do Hegel: “O concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações abstratas.” Isto é, o concreto imediato é o ponto de partida do conhecimento, mas só pode ser desvendado depois de uma passagem por determinações abstratas, que permitem sua compreensão. Como dizia Marx, se a realidade imediata fosse compreensível por si mesma, a ciência não seria necessária.
A compreensão de um objeto concreto parte das suas qualidades físicas, que em economia nos remete ao valor de uso, sua utilidade concreta para nós. Mas a compreensão da sua realidade social – porque tem tal preço – só é possível pela viagem que o compreende como produzido pelo trabalho social dos homens, que define seu valor de troca. Retornamos àquele objeto concreto agora como síntese de múltiplas determinações abstratas, como concreto socialmente determinado.
Isso vale só como exemplo da forma como o pensamento dialético se apropria da realidade e como o pensamento do Hegel é essencial.
Agora é esperar o Hegel do Žižek.

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Está previsto para fevereiro o lançamento de Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético, considerada a principal obra de Slavoj Žižek. Diante do impasses enfrentados pelo pensamento contemporâneo, o filósofo esloveno defende não só o tão temido retorno a Hegel como a repetição e a superação de seus triunfos e limitações, por meio da interação com o antifilósofo Jacques Lacan.