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domingo, 30 de setembro de 2012

Uma acusação infamante movida pelo preconceito


J. Carlos de Assis*
Carta Maior

Desde a infame condenação do capitão Dreyfus pela Justiça Militar francesa no início do século XX sabe-se que a opinião pública, sensível a preconceitos e desorientada pela imprensa, nem sempre é a melhor conselheira de julgamentos que envolvem aspectos políticos apaixonados. Guardadas as distâncias de época e de tema, estamos diante de nosso caso Dreyfus no julgamento de alguns dos réus do chamado mensalão. Entre os principais deles, José Dirceu e José Genoíno.

Refiro-me especificamente à imputação do crime de formação de quadrilha a esses dois dirigentes. No caso de Dirceu, então Chefe da Casa Civil, é necessário um enorme contorcionismo jurídico para deduzir o crime de formação de quadrilha de um ou de outro encontro formal ou informal com dirigentes de bancos, na medida em que receber pessoas, empresários ou não, estava entre suas atribuições funcionais. Sem o crime de quadrilha, porém, não haveria base para o crime de corrupção ativa, a outra imputação dele derivada. Daí o contorcionismo.

Na verdade, há algo de podre no reino desse julgamento. Misturaram-se crimes reais com crimes fictícios, e crimes reais com irregularidades eleitorais que não estão capituladas como crimes (caixa dois de campanha). O que está sendo apresentado como comportamento exemplar da Justiça no fundo não passa de exemplo da tendenciosidade do Judiciário. É importante, pois, reconstituir os fatos passo a passo para tentar obter uma visão imparcial do conjunto.

Tudo começa com a “denúncia espetacular” de Roberto Jefferson, não motivada por sentimentos de justiça mas como vingança por causa da exposição do esquema de corrupção do PTB, sob sua presidência, apanhado em plena tentativa de achaque ao PT. Da denúncia “bombástica”, por si mesma um meio de suscitar paixões na opinião pública acrítica, surgiu o inquérito pela Polícia Federal, que identificou outros beneficiários de esquemas de caixa dois de partidos aliados para cobrir supostas despesas eleitorais. Foi esse inquérito que resultou na denúncia formal de uma “quadrilha” chefiada por José Dirceu por parte do então Procurador Geral da República, Antônio Fernando de Souza.

Passado algum tempo, o novo Procurador, Roberto Gurgel, vice do anterior, seguiu a mesma linha, repetindo a denúncia infamante de “quadrilha”. Carregar na denúncia é, aliás, quase um vício de ofício de qualquer promotor. Mas o ministro relator do STF, Joaquim Barbosa, não quis parecer frouxo: acolheu no seu voto o mesmo epíteto infamante. Não é preciso ser um especialista em reações de opinião pública para concluir que esses três movimentos se reforçaram na relação com ela. O procurador Antônio quis apresentar uma denúncia espetacular; Gurgel, seu vice anterior, não poderia ficar por menos. Nessa altura, excitada pelos dois procuradores, grande parte da opinião pública queria ver sangue. Barbosa lhe deu!

No fundo, estamos diante de um espetáculo de demagogia por parte de funcionários públicos que, não dependendo de votos, deveriam ser guardiães imparciais da Justiça mas na verdade agem partidariamente. Alguns dizem que Dirceu é arrogante. Nas poucas vezes em que tratei com ele, não percebi nenhuma arrogância. Entretanto, se este for o caso, é preciso, desde logo, capitular arrogância no Código Penal que está sendo reformado tendo em vista a única jurisprudência nova que este julgamento está produzindo, ao lado da formação de quadrilha num conluio invisível “entre quatro paredes”.

Há em tudo isso um preconceito contra a democracia por parte dos que jamais aceitaram o fato de o PT ter ganhado duas vezes pelo voto a Presidência da República. Esclareço que não sou do PT, nunca fui e não pretendo ser. Mas, longe de ter o talento de Zola, move-me aquele sentimento de justiça que o levou a escrever “J’acuse”, em relação ao processo injusto contra, principalmente, José Dirceu. Se ele chefiou uma quadrilha, todos os partidos políticos do Brasil são quadrilhas. Se ele não chefiou, e vier a ser condenado, este Supremo mergulhará em indignidade. E teremos de esperar uma outra composição dele para que, no futuro, como aconteceu com Dreyfus, a Justiça brasileira venha a se desculpar perante Dirceu e Genoíno.

* Economista e professor da UEPB, presidente do Intersul, autor junto com o matemático Francisco Antonio Doria do recém-lançado “O Universo Neoliberal em Desencanto”, Ed. Civilização Brasileira. Esta coluna sai às terças também no site Rumos do Brasil e no jornal carioca Monitor Mercantil.

sábado, 29 de setembro de 2012

Um espectro ronda o jornalismo: Chatô

Em texto exclusivo para o 247, o escritor Fernando Morais narra como, em meados do século passado, Assis Chateaubriand encomendou ao diretor do Estado de Minas uma reportagem sobre o estupro supostamente cometido pelo arcebispo de Belo Horizonte contra a própria irmã. Detalhe: Dom Cabral não tinha irmã. Passadas oito décadas, Chatô exumou-se do cemitério e encarnou nos blogueiros limpos e editores dos principais jornais brasileiros



Por Fernando Morais

As agressões e infâmias dirigidas por alguns jornais, revistas, blogs e telejornais ao ex-presidente Lula e ao ex-ministro José Dirceu me fazem lembrar um episódio ocorrido em Belo Horizonte em meados do século passado.

Todas as sextas-feiras o grande cronista Rubem Braga assinava uma coluna no jornal “Estado de Minas”, o principal órgão dos Diários Associados em Minas Gerais. Irreverente e anticlerical, certa vez Braga escreveu uma crônica considerada desrespeitosa à figura de Nossa Senhora de Lourdes, padroeira de Belo Horizonte. Herege, em si, aos olhos da conservadora sociedade mineira o artigo adquiriu tons ainda mais explosivos pela casualidade de ter sido publicado numa Sexta-Feira da Paixão.

Indignado, o arcebispo metropolitano Dom Antonio dos Santos Cabral redigiu uma dura homilia recomendando aos mineiros que deixassem de assinar, comprar e sobretudo de ler o “Estado de Minas”. Dois dias depois o documento foi lido na missa de domingo de todas as quinhentas e tantas paróquias de Minas Gerais.

O míssil disparado pelo religioso jogou no chão a vendagem daquele que era, até então, o mais prestigioso jornal do Estado. E logo repercutiu no Rio de Janeiro. Mais precisamente na mesa do pequenino paraibano Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, um império com rádios e jornais espalhados por todos os cantos do Brasil.

Célebre pela fama de jamais engolir desaforos, o colérico Chateaubriand telefonou para Geraldo Teixeira da Costa, diretor do “Estado de Minas”, com uma ordem expressa, repleta de exclamações:
- Seu Gegê! Quero uma reportagem de página inteira contando que quando jovem Dom Cabral estuprou a própria irmã! O senhor tem uma semana para publicar isso!

Tamanha barbaridade não passaria pela cabeça de quem quer que conhecesse o austero Dom Cabral, cujas virtudes haviam levado o Papa Pio XI a agraciá-lo com o título de Conde. Mas ordens eram ordens.

Os dias se passavam e a reportagem não aparecia no jornal. Duas semanas depois do ultimato, um Chateaubriand possuído pelo demônio ligou de novo para Belo Horizonte:
- Seu Gegê! Seu Gegê! O senhor esqueceu quem é que manda nesta merda de jornal? O senhor esqueceu quem é que paga seu salario, seu Gegê? Cadê a reportagem sobre o estupro incestuoso cometido por Dom Cabral?

Do outro lado da linha, um pálido e tremebundo Gegê gaguejou:
- Doutor Assis, temos um problema. Descobrimos que Dom Cabral é filho único, não tem e nunca teve irmãs...

Sapateando sobre o tapete, Chateaubriand parecia tomado por um surto nervoso:
- TEMOS um problema? Seu Gegê, nós não temos problema algum! Isso é um problema de Dom Cabral! Publique a reportagem! Cabe A ELE provar que não tem irmãs, entendeu, seu Gegê? Vou repetir, seu Gegê: cabe A ELE provar que não tem irmãs!!

Passadas oito décadas, suspeito que Chatô exumou-se do Cemitério do Araçá e, de peixeira na cinta, encarnou nos blogueiros limpos e nos editores dos principais jornais e revistas brasileiros.

Como no caso de Dom Cabral, cabe a Lula provar que não marchou com a família e com Deus, em 1964, quando tinha 18 anos, pedindo aos militares que derrubassem o governo do presidente João Goulart. Cabe a Dirceu provar que não foi o chefe do chamado mensalão.

Comentário do Senhor C.:
- Fernando Morais, como se sabe, é jornalista e escritor. É autor, entre outros livros, de “Chatô, o rei do Brasil”, biografia de Assis Chateaubriand. Também elabora - momentaneamente interrompida - uma biografia de José Dirceu. De resto, o que ele relata neste texto tem tudo a ver com o que acontece nas redações dos principais jornais e mídia do país. É condenação sem provas e sem julgamento, e se o acusado esperneia, ah, então ele que prove o contrário. 

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A ascensão conservadora em SP

 Matheus Pichonelli


Num seminário sobre a ascensão do conservadorismo em São Paulo realizado na USP no final de agosto, a filósofa Marilena Chauí provocou risos na plateia ao contar o estranhamento de uma amiga sobre o comportamento de parte dos habitantes da maior cidade do País. A amiga dizia custar a entender como pessoas tão hospitaleiras e civilizadas na vida doméstica se transformavam em “feras indomáveis” quando entravam em espaços compartilhados, como o trânsito ou as filas do banco.

É fato. Quem já acompanhou os bate-bocas diários protagonizados em disputas fratricidas pelas faixas preferenciais, barbeiragens no trânsito ou um simples carrinho de supermercado sabe do que a filósofa está falando. Nessas pequenas disputas pelos espaços públicos, brigamos, ofendemos, damos cotoveladas, estacionamos em vagas proibidas, ofendemos os garçons, o manobrista, o vendedor, o atendente, o empregado, o motoboy, a vizinha do terceiro andar…e tudo parece natural, pacífico até segunda ordem.

Como se ganhar no grito fosse esporte popular. Não é. Como explicou Chauí no mesmo evento, essa deterioração das relações interpessoais possui raízes históricas. Tem base numa violência historicamente cristalizada que opera com base na discriminação e preconceito de classe, sexo, religião, profissão e raça. Que naturaliza as diferenças. Que não reconhece a humanidade do outro. Que confunde o exercício da consciência, da liberdade e da responsabilidade com um conjunto de regulamento típico das empresas e suas horas marcadas e regras de comportamento. E se assenta sobre as “características mais alarmantes” do neoliberalismo: o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço da vida privada.

O resultado é que sabemos tudo da intimidade da celebridade mas não somos capazes de conviver de forma civilizada nos espaços comum – espaços que, muitas vezes, se restringem à fila de banco ou ao trânsito. Ali o outro é sempre uma ameaça.

Por isso corremos para nos abrigar em escolas, escoltas ou sistema de saúde privados: para nos “proteger” e nos diferenciar.

A violência é, assim, uma reação de quem vê o acesso a esses espaços antes impenetráveis como a invasão de um espaço cativo. Como se a proteção fosse violada e prestígio, ameaçado, pela presença das “gentes diferenciadas”.

Em tempos de eleição, essa violência latente ganha amplificação pelos discursos. O desafio é puxar meia hora de conversa em qualquer grupo de qualquer lugar e passar menos de cinco minutos sem ouvir velhos absurdos. Discursos que, mais do que ignorância política, atestam a manifestação impune dos mais elementares preconceitos sociais.

Daí a mesmice, ouso dizer, dos questionamentos em tempos de campanha (“O senhor é a favor do aborto?”. “Vai permitir casamento entre gays?”. “Acredita em Deus?”) e posições dos candidatos (“sou a favor da ética”, como quem se posiciona a favor do sol, da saúde e da alegria). Tanto a mídia como os candidatos sabem exatamente o terreno perigoso em que estão pisando. Por isso todos resolvem, a cada dois anos, querer saber o que pensam os líderes religiosos sobre tal e qual candidato. O referendo para as urnas passa pela benção dos homens de fé.

É como se, dotado dos padrões de comportamento religiosos exigidos, o candidato fosse incapaz de mexer nas duas obsessões das classes conservadoras, base do eleitorado, e também citadas pela filósofa: a ordem e a segurança.

Esse comportamento foi, em parte, retratado na pesquisa Datafolha divulgada no domingo 23 sobre o perfil do eleitor paulistano. O levantamento mostrou que nada menos do que 79% dos eleitores acham que acreditar em Deus torna as pessoas melhores. Com perguntas como esta (dez no total), o instituto mostrou haver em São Paulo nada menos do que 34% de eleitores identificados como conservadores – enquanto apenas 27% se dizem liberais. O restante se diz neutro.

E o que é ser conservador em São Paulo, além do já citado talento em se estapear pela faixa de trânsito ou pelo carrinho de supermercado (afinal, paga-se para se ter razão)? Pela pesquisa, descobrimos exatamente quem confunde as atribuições do Estado com uma cerca elétrica aos medos mais inexplicáveis. Na metrópole, mostrou o Datafolha, duas em cada dez pessoas acreditam que a homossexualidade deve ser desencorajada pela sociedade. Mais: três em cada dez eleitores acham que pobres migrantes trazem problemas para a cidade; e 60% veem na “maldade das pessoas” a causa principal da violência.

É a divisão clara de quem vê o mundo por uma ótima simplista afora do próprio umbigo. E que, como consequência, cobra soluções fáceis para lidar com problemas que não consegue explicar. É o que leva uma parcela assustadora do eleitorado (41%) a considerar a pena de morte como a “melhor punição para indivíduos que cometeram crimes graves”.


Um paulista típico

O cálculo parece claro. Esse eleitor quer soluções agressivas contra tudo o que o ameace (da prisão de adolescentes infratores à proibição total das drogas) e, ao mesmo tempo, tem dificuldade em participar da vida pública, algo evidente da concepção segundo a qual os sindicatos “servem mais para fazer política do que defender os trabalhadores”, como declaram 60% dos eleitores.

Não estranhe se um dia, numa roda de conversa, identificar neste eleitor a “fera indomável” citada por Chauí. O cidadão-eleitor que em casa fala de paz, prosperidade, valores, esforço, que bota nariz de palhaço ao votar e sai às ruas, uma vez por mês, para cobrar “ética na política”, é capaz de promover uma hecatombe se alguém chegar perto do seu automóvel, o único elo que o diferencia numa multidão sem identidade a reproduzir uma velha violência incrustrada. O reacionarismo que exige do Estado medidas duras contra tudo o que não é ele é a face mais notável da covardia.

Em defesa de LULA



"Oportunismo, irresponsabilidade, ciumeira e ressentimento"

por Roberto Requião, no Senado Federal

Não costumo assinar manifestos, abaixo-assinados ou participar de correntes. Mas quero registrar aqui minha solidariedade a Luís Inácio Lula da Silva, por duas vezes presidente do Brasil.

Diante de tanto oportunismo, irresponsabilidade, ciumeira e ressentimento não é possível que se cale, que se furte a um gesto de companheirismo em direção ao presidente Lula. Sim, de companheirismo, que pouco e me dá o deboche do sociólogo.

A oposição não perdoa, e jamais desculpará a ascensão do retirante nordestino à Presidência da República.

A ascensão do metalúrgico talvez ela aceitasse, mas não a do pau-de-arara. Este, não!

Uma ressalva. Quando digo oposição, o que menos conta são os partidos da minoria. O que mais conta, o que pesa mesmo, o que é significante, é a mídia, aquele seleto grupo de dez jornais, televisões, revistas e rádios que consome mais de 80 por cento das verbas estatais de propaganda. Aquele finíssimo, distintíssimo grupo de meios de comunicação “que está fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada”, como resumiu com a sinceridade e a desenvoltura de quem sabe e manda, a senhora Maria Judith Brito, presidente da Associação Nacional dos Jornais.

Este conjunto de articulistas e blogueiros desfrutáveis que faz a “posição oposicionista” nos meios de comunicação usa uma entrevista que não houve para, mais uma vez, tentar indigitar o ex-presidente. Primeiro, tivemos o famosíssimo grampo sem áudio. Mais hilário ainda: a transcrição do áudio inexistente mostrava-se extremamente favorável aos grampeados. Um grampo a favor. E sem áudio.

Lembram?

Houve até quem quisesse o impeachment de Lula pelo grampo sem áudio e a favor dos grampeados, houve até quem ameaçasse bater no presidente.

Agora, este mesmo conjunto de jornais, rádios, televisões e revistas, esses mesmos patéticos articulistas e blogueiros querem que se processe o ex-presidente. Não me expresso bem: não querem processá-lo. Querem condená-lo, pois como a Rainha de Copas, de Lewis Carol, primeiro a forca, depois o julgamento.

Recomendaria a vossas excelências que tapassem o nariz, não fizessem conta dos solecismos, da pobreza vocabular, das ofensas à regência verbal e lessem o que escreve esse exclusivíssimo clube de eternos vigilantes.

Os mais velhos de nós, os que acompanharam o dia-a-dia do país antes do golpe de 64, vão encontrar assustadores pontos de contato entre o jornalismo e o colunismo político daquela época com o jornalismo e o colunismo político dos dias de hoje.

Embora, diga-se, os corvos de outrora crocitassem com mais elegância que os grasnadores de agora.

Fui governador do Paraná nos oito anos em que Lula presidiu o Brasil. Por diversas vezes, inúmeras vezes, manifestei discordância com a forma de sua excelência governar, com suas decisões ou indecisões. Especialmente em relação à política econômica, à submissão do país ao capitalismo financeiro, aos rentistas.

Mas havia um Meireles no meio do caminho. No meio do caminho, para gáudio da oposição e para a desgraça do país, havia um Meireles.

É verdade que Lula acendeu uma vela também para os pobres. E não foi pouco o que ele fez. É preciso ter entranhados na alma o preconceito, a insensibilidade e a impiedade de nossas elites para não se louvar o que ele fez pela nossa gente humilde.

Na verdade, no fundo da alma escravocrata de nossas elites mora o despeito com a atenção dada aos mais pobres por Lula.

Apenas corações empedrados por privilégios de classe, apenas almas endurecidas pelos séculos e séculos de mandonismo, de autoritarismo, de prepotência e de desprezo pelos trabalhadores podem explicar esse combate contínuo aos programas de inclusão das camadas mais pobres dos brasileiros ao maravilhoso mundo do consumo de três refeições por dia.

A oposição –- somem-se sempre a mídia com a minoria, mas o comando é da mídia — também não perdoa Lula porque ele sempre a surpreendeu, frustrou suas apostas, fez com que ela quebrasse a cara seguidamente.

Foi assim em 2002, quando ele se elegeu; foi assim em 2006, quando se reelegeu; foi assim na crise de 2008, quando ele não seguiu as receitas daqueles gênios que quebraram o Brasil três vezes, entre 1995 e 2002, e impediu que a crise financeira mundial levasse também o nosso país de roldão. E, finalmente, foi assim em 2010, quando elegeu Dilma como sucessora.

O desempenho da oposição – isto é, mídia e minoria, sob o comando da mídia — na crise de 2008 foi impagável. Caso alguém queira se divertir é só acessar um vídeo que corre aí pela internet com uma seleção de opiniões dos economistas preferidos dos telejornais, todos recomendando a Lula rigor fiscal extremo, austeridade e ascetismo dos padres do deserto; corte nos gastos sociais, cortes nos investimentos, elevação dos juros, elevação do depósito compulsório, congelamento do salário mínimo, contenção dos reajustes salarial, flexibilização dos leis trabalhistas, diminuindo direitos dos assalariados.

Enfim, recomendavam, como sempre aconselham, atar os trabalhadores ao pelourinho, tirar-lhes o couro, para que os bancos, os rentistas, o capital vadio restassem incólumes e seus privilégios protegidos. Receitavam para o Brasil o que a troika da União Européia enfia goela abaixo da Grécia, da Espanha, da Itália, de Portugal.

Lula não fez nada do que aqueles doutores prescreviam. Em um dos vídeos, um desses sapientíssimos senhores ridicularizava os conhecimentos macroeconômicos do presidente, prevendo que o “populismo” e o “espontaneísmo” de Lula levariam o Brasil ao desastre. Pois é.

A acusação mais frequente que se fazia, e se faz, a Lula é a de ser “populista”. A mesmíssima acusação feita a Getúlio quando criou a CLT, o salário mínimo, as férias e descanso remunerados, a previdência social; a mesmíssima acusação feita a João Goulart quando deu aumento de cem por cento ao salário mínimo ou quando sancionou a lei instituindo o 13° salário ou quando criou a Sunab; ou quando desencadeou a campanha das reformas; a mesmíssima acusação feita a Juscelino quando ele decidiu enfrentar o FMI e suas infamantes condições para liberação de financiamento.

Qualquer coisa que beneficie os trabalhadores, que dê um sopro de vida e de esperança aos mais pobres, que compense minimamente os deserdados e humilhados, qualquer coisa, por modesta que seja que cutuque os privilégios da casa grande, qualquer coisa, é imediatamente classificada como “populismo”.

Outra coisa que a oposição não perdoa em Lula é sua projeção internacional. Quanto ciúme, meu Deus! Quanto despeito! Quanta dor de cotovelo! A nossa bem postada, e sempre constispadinha elite, jamais aceitou ver o país representado por um pau-de-arara. Ainda mais que não fala inglês. Oh, horror!

Divergi de Lula inúmeras vezes. Quase sempre em relação à econômica. Com a popularidade que tinha, com o respeito que conquistara, com a força de seu carisma poderia ter feito movimentos consistentes que nos levassem a romper com os fundamentos liberais que orientavam — e orientam — a política econômica brasileira.

E que mantinham – e mantém — o país dependente, atrasado, em processo veloz de desindustrialização.

Pior, as circunstâncias favoráveis do comércio mundial valorizaram ainda mais o nosso papel de produtores e exportadores de commodities, criando uma “zona de conforto” que desarmou os ânimos e enfraqueceu os discursos de quem lutava por mudanças.

Outra divergência que me agastou com Lula foi em relação à mídia. Era mais do que claro que a lua-de-mel inicial com a chamada “grande imprensa” seria sucedida pela mais impiedosa e, em se tratando de um pau-de-arara, pela mais desrespeitosa oposição.

Em breve tempo, as sete irmãs que dominam a opinião pública nacional cobrariam caro, caríssimo o período em que fora obrigada a engolir o sapo barbudo. O troco viria na primeira crise.

Conversei sobre isso com o presidente, que procurou me aquietar e recomendou-me que falasse com um de seus ministros que, segundo ele, cuidava desse assunto. E o ministro me disse: “Por que criar um sistema público de comunicação, por que apoiar as rádios e a imprensa regional se temos a nossa televisão? A Globo é a nossa televisão”, disse-me o então poderoso e esfuziante ministro.

Pois é.

Quando busco paralelo entre esta campanha de tentativa de destruição de Lula e as campanhas de destruição de Getúlio e Jango, não posso deixar de notar que eles, pelo menos, tinham um jornal de circulação nacional e uma rádio pública também de alcance nacional para defendê-los. Hoje, que temos?

E o que entristece é que essa campanha atinge Lula quando ele se encontra duplamente fragilizado. Fragilizado pela doença, que lhe rouba um de seus dons mais notáveis: a sua voz, a sua palavra, seu poder de comunicação.

Fragilizado pelo espetáculo mediático em que se transformou o julgamento do tal mensalão.

Se algum respeito, se alguma condescendência ainda havia para com esse pau-de-arara, foi tudo pelo ralo, pelo esgoto em que costumam chafurdar historicamente os nossos meios de comunicação.

Não sejamos ingênuos de pedir ou exigir compostura da mídia. Não faz parte de seus usos e costumes. Sua impiedade, sua crueldade programada pelos interesses de classe não estabelece limites.

Não é apenas o ex-presidente que é desrespeitado de forma baixa, grosseira. A presidente Dilma também. Por vários dias, a nossa gloriosa grande mídia deu enorme destaque às peripécias de uma pobre mulher, certamente drogada, certamente alcoolizada, certamente deficiente mental que teria tentado invadir o Palácio do Planalto, dizendo-se “marido” da presidente.

Sem qualquer pudor, sem o menor traço de respeito humano, a Folha de São Paulo, especialmente, transformou a infeliz em personagem, em celebridade. Chegou até mesmo a destacar um repórter para “entrevistar” a mãe da tal mulher. Meu Deus!

Às vésperas do golpe de 1964, o desrespeito da grande mídia para com o presidente João Goulart e sua mulher Maria Teresa chegou ao ponto de o mais famoso colunista social do país à época publicar uma nota dizendo que na Granja do Torto florescia uma trepadeira. Torto, como referência ao defeito físico do presidente; trepadeira, como referência caluniosa à primeira-dama do país.

Alguma diferença entre um desrespeito e outro?

Esse tipo de baixeza não se vê quando os presidentes são do agrado da grande mídia, quando os presidentes frequentam os mesmos clubes que os nossos guardiões dos bons costumes.

Nem que tenham, supostamente, filhos fora do casamento, que disso a mídia acha uma baixeza tratar.

Só um verdadeiro idiota pode considerar Lula imune a defeitos e erros, mas só outro idiota pode negar o reconhecimento das qualidades de Lula como presidente do Brasil

Pois é.


Comentário do Senhor C.:

- Não sou um alinhado de todas as ordens a tudo que diz e fez Roberto Requião. Agora, a respeito deste seu discurso, reputo-o irretocável e irretorquível.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Tecido social



Reinaldo Boucinhas, 67, é engenheiro e está indignado com "essa corja do PT que dominou o país". Ano passado, Reinaldo teve a carta cassada por excesso de pontos. Foi ao despachante e por R$ 1.100 em três vezes sem juros, comprou uma habilitação limpinha, sem fazer o curso de reciclagem ou passar por suspensão. "Cê queria o que? Que eu ficasse um ano sem dirigir?! Eu trabalho, queridão, sou pai de família!" No vidro traseiro de seu carro, sr. Boucinhas tem um adesivo: uma mão sem o mindinho, sob o símbolo de proibido.

Luciana Boucinhas, 33, é atriz, dramaturga e acabou de aprovar na Lei Rouanet um monólogo de sua autoria. "Istmo Holístico" arrecadará R$ 300 mil de isenção fiscal, dos quais Luciana embolsará 30, apresentando notas falsas de "despesas com transporte", arrumadas por seu namorado, empresário. "Nesse país, com arte de vanguarda, não dá pra viver de bilheteria, cara! Tô me financiando, cara! Tô financiando a arte, entendeu, cara?!"

Rafael Galhardi, 42, é empresário e tem uma fábrica de embalagens biodegradáveis. A fábrica está numa área estritamente residencial. "Pra você ver como é esse país! Você quer produzir e não te deixam! Quer dizer... Fui obrigado a pagar propina pro fiscal liberar a fábrica! É foda! Esse país é foda!"

Hélio Pereira, 55, fiscal da prefeitura e católico praticante. Confessa-se todo ano. Teme as chamas do inferno. "Mas você quer o quê? Que eu viva com o salário de funcionário público?! Eu sou só uma gota no oceano!" O padre da igreja que Hélio frequenta, felizmente, tem lhe acalmado. Com alguns pais-nossos, ave-marias e boas ações, ele jura, Hélio entrará no reino dos céus.

Padre Osvaldo, 48, vê seu rebanho diminuir a cada ano, levado pela Igreja Internacional da Assembleia Divina, duas ruas abaixo. "Gente ignorante, gente corrupta, que só quer saber do dízimo!" Semana passada, padre Osvaldo recebeu uma boa notícia. Um de seus paroquianos, fiscal da prefeitura, conseguirá cassar o alvará do templo, expulsando os infiéis para outro bairro.

Pastor Sandro, 31, é membro da Igreja Internacional da Assembleia Divina e está preocupado com esse lance do alvará. "A Igreja Católica deita e rola e ninguém faz nada, mas é o evangélico mexer um dedo que cai todo mundo em cima!" Por isso, pastor Sandro está agindo na surdina. Já falou com o Elias e o Sem Noção, seus amigos de infância, no Morro do Querosene, pra darem um susto no padre Osvaldo. "Só um susto. Vamos ver se ele recua."

Sem Noção, 31, foi morto pela PM no último sábado com um tiro na nuca, numa quebrada do Querosene. Deixou uma moto, dez pedras de crack, cinco filhos e três viúvas.

Major Augusto, 55, acaba de dar cinquentinha para que o Pedrão, do almoxarifado, libere pelo menos um.32 lá das apreensões, pra ele poder cravar um "resistência à prisão" na execução do noia. "Ó que paisinho?! Agora cê precisa de desculpa pra matar bandido!"

Antonio P., 35, é escritor e deu R$ 50 pro major Augusto, em 1999, quando foi parado numa blitz com sua namorada, Margarida, e estava com o IPVA vencido.

Margarida: tinha olhos azuis como bolas de gude e falava em viver na Itália. Que fim terá levado?

antonioprata.folha@uol.com.br


Comentário do Senhor C.:

- Uma crônica bem-humorada, tanto quanto cáustica, dos costumes dos nossos dias, quando o moralismo campeia e ganha primeiras páginas e editoriais a torto e a direito, audiência de novela das nove e proselitismo de alguns queridinhos da mídia que se dizem íntimos da honestidade e têm a ficha limpa. Quem diria! Eu quietinho no meu canto, assisto a este grasnar de aves de mau agouro reclamando da corrupção e da degradação da política. Aves canoras, mas esquecidas que a corrupção está mais dentro do que fora delas, e que é somente de dedo em riste apontando a prostituta nas ruas que se faz vivo o versículo bíblico que dizia: é mais fácil enxergar um cisco no olho do teu irmão do que uma  trave no teu próprio! Evoé!


terça-feira, 25 de setembro de 2012

Falsa intimidade


Vladimir Safatle




A moralidade é uma virtude disputada. Mesmo aqueles que dela conhecem apenas o nome gostam de falar sobre virtudes morais como se fossem íntimos de longa data.








Em época eleitoral, por exemplo, somos obrigados a acompanhar o espetáculo lamentável de moralistas de última hora, que parecem acreditar no pendor infinito da população ao esquecimento e à indignação seletiva.

Melhor seria que eles se abstivessem de falar de moral antes de meditar profundamente a respeito da passagem do Evangelho que exorta a primeiro tirar a trave no seu próprio olho antes de retirar o cisco no olho do próximo.

Por exemplo, o Brasil vive um momento importante com o corajoso julgamento do chamado mensalão. Espera-se, com justiça, que daí nasça uma nova jurisprudência para crimes de corrupção eleitoral. Espera-se também que ninguém saia impune desse caso vergonhoso.

No entanto é tentar resvalar a moralidade à condição de discurso da aparência e da esperteza ver políticos como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e seu candidato à Prefeitura de São Paulo tentarem utilizar a justa indignação popular em benefício eleitoral próprio.

Caso eles realmente amem os usos das virtudes morais em política, melhor seria se começassem por fazer uma profunda autocrítica sobre o papel de seu partido na criação do próprio mensalão, da acusação de compra de voto na emenda da reeleição, assim como fornecer uma resposta que não fira a inteligência quando membros de seu partido -como Marconi Perillo, Yeda Crusius e Cássio Cunha Lima- aparecem envolvidos até a medula em casos de corrupção.

Seria bom também que eles explicassem por que apoiam incondicionalmente um prefeito que chegou a ter seus bens apreendidos pela Justiça no ano passado devido ao caráter da contratação da empresa Controlar, e por que a Justiça suíça e a francesa investigam propinas que a empresa Alstom teria pago a políticos do governo paulista em troca de contratos com a Eletropaulo.

Por fim, seria uma boa demonstração de respeito aos eleitores que o candidato Serra se defendesse, de preferência sem impropérios, a respeito das acusações sobre o processo de privatização de empresas federais no período FHC.

Sem isso, toda essa pantomima lembrará uma velha piada francesa sobre um sujeito que dizia a todos em sua pequena cidade ser amigo de Charles de Gaulle. Eis que um dia, De Gaulle aparece na cidade. Para não ser desmascarado, o sujeito resolve chegar perto do presidente e, com um tom de cumplicidade, perguntar: "E aí, Charles, o que há de novo?". "De novo", respondeu De Gaulle,"só mesmo essa intimidade".



domingo, 23 de setembro de 2012

Jurista desmente revista do crime organizado


O jurista Celso Antônio Bandeira de Mello desmentiu nota publicada na na edição 2.287 da revista Veja informando que ele estaria redigindo um manifesto criticando a atuação dos ministros do STF no julgamento do mensalão.

Leia a declaração de Celso Antônio Bandeira de Mello.

Uma notícia deslavadamente falsa publicada por um semanário intitulado “Veja” diz que eu estaria a redigir um manifesto criticando a atuação de Ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ação que a imprensa batizou de mensalão e sobremais que neste documento seria pedido que aquela Corte procedesse de modo “democrático”, “conduzido apenas de acordo com os autos” e “com respeito à presunção de inocência dos réus”. Não tomei conhecimento imediato da notícia, pois a recebi tardiamente, por informação que me foi transmitida, já que, como é compreensível, não leio publicações às quais não atribuo a menor credibilidade.


No caso, chega a ser disparatada a informação inverídica, pois não teria sentido concitar justamente os encarregados de afirmar a ordem jurídica do País, a respeitarem noções tão rudimentares que os estudantes de Direito, desde o início do Curso, já a conhecem, quais as de que “
o mundo do juiz é o mundo dos autos” – e não o da Imprensa – e que é com base neles que se julga e que, ademais, em todo o mundo civilizado existe a “presunção de inocência dos réus”.

É esta a razão pela qual, sabidamente, indiciados não são apenados em função de meras conjecturas, de suposições ou de simples indícios, mas tão somente quando existirem provas certas de que procederam culposa ou dolosamente contra o Direito, conforme o caso. Pretender dizer isto em um manifesto aos Ministros do Supremo Tribunal Federal seria até mesmo desrespeitoso e atrevido, por implicar suposição de que eles ignoram o óbvio ou que são capazes de afrontar noções jurídicas comezinhas. Nenhum profissional do Direito experimentado, com muitos anos de profissão, cometeria tal dislate. É claro que isto pode passar desapercebido a um leigo ao preparar noticiário, mas não convém que fique sem um cabal desmentido, para que os leitores não sejam enganados em sua boa-fé.


Estado de exceção



Luiz Gonzaga Belluzzo

A lei promulgada pelo regime nazista em 1935 prescrevia que era “digno de punição qualquer crime definido como tal pelo ‘saudável sentimento’ popular’”. No Mein Kampf, Adolph Hitler proclamava que a finalidade do Estado é preservar e promover uma comunidade fundada na igualdade física e psíquica de seus membros.

Herbert Marcuse escreveu o ensaio O Estado e o Indivíduo no Nacional-Socialismo. Ele considerava a ordem liberal um grande avanço da humanidade. Sua emergência na história submeteu o exercício da soberania e do poder ao constrangimento da lei impessoal e abstrata. Mas Marcuse também procurou demonstrar que a ameaça do totalitarismo está sempre presente nos subterrâneos da sociedade moderna. Para ele, é permanente o risco de derrocada do Estado de Direito: os interesses de grupos privados, em competição desenfreada, tentam se apoderar diretamente do Estado, suprimindo a sua independência formal em relação à sociedade civil.

Foi o que aconteceu no regime nazista. O Estado foi apropriado pelo “movimento” racial e totalitário nascido nas entranhas da sociedade civil. Os tribunais passaram a decidir como supremos censores e sentinelas do “saudável sentimento popular”, definido a partir da legitimidade étnica dos cidadãos. A primeira vítima do populismo judiciário do nazismo foi o princípio da legalidade, com o esmaecimento das fronteiras entre o que é lícito e o que não é. 

Leio que circula nos meios judiciários a ideia de “flexibilizar” a tipificação da conduta criminosa. Vou dar um exemplo, talvez um tanto exagerado: se João de Tal arrotar na rua, corre o risco de ser enquadrado no crime de atentado violento ao pudor.

Trata-se da emergência, na esfera jurídico-política, da exceção permanente. Coloca-se em movimento a lógica do poder absoluto, aquele que não só corrompe, como corrompe absolutamente. Os cânones do Estado de Direito impõem aos titulares da prerrogativa de vigiar, julgar e punir o delicado sopesamento das relações entre a garantia dos direitos individuais, a publicidade dos atos praticados pela autoridade e a impessoalidade do procedimento persecutório. O consensus iuris é o reconhecimento dos cidadãos de que o direito, ou seja, o sistema de regras positivas emanadas dos poderes do Estado, legitimado pelo sufrágio universal, é o único critério aceitável para punir quem se aventura à violação da norma abstrata.

Já há muito tempo, não só no Brasil, mas também no resto do mundo, sucedem-se os episódios de constrangimento midiático das funções essenciais do Estado de Direito, para perseguir adversários, ajudar os amigos, quando não cuidar de legislar em causa própria. A exceção permanente inscrita nos métodos de justiçamento midiático é funesta para o Estado Democrático de Direito: transforma as autoridades em heróis vingadores, encarregados de limpar a cidade (ou o País), ainda que o preço seja deseducar os cidadãos e aumentar a sensação de insegurança da sociedade. Nessa cruzada militam os que fazem gravações clandestinas ou inventam provas e os jornalistas que, em nome de uma “boa causa”, tentam manipular a opinião pública.

Os apressadinhos não se cansam de dizer que o Judiciário é lento. Poderia e deveria, com mais recursos, pessoal e, sobretudo, com o aperfeiçoamento dos códigos de processo, tornar-se mais rápido. Mas, num sentido profundo, a lentidão é uma virtude do Judiciário. Melhor seria dizer que a instantaneidade dos tempos da web é estranha ao bom cumprimento da prestação jurisdicional. Não haverá julgamento justo sem o contraditório entre as partes, a exibição de provas, os depoimentos. A formação da convicção do juiz, qualquer estudante de Direito sabe, depende da argumentação das partes.

Invocar a virtude, a honestidade ou os bons propósitos para contestar a impessoalidade e o “formalismo” da lei é a maior corrupção praticada contra a vida democrática. Montesquieu dizia que há insanidade na substituição da força da lei pela presunção de virtude autoalegada.

O Judiciário era rápido e eficiente na União Soviética de Stalin ou na Alemanha de Hitler. Os processos terminavam sempre de forma previsível e o contraditório não passava de uma encenação. Tudo estava justificado pelas razões superiores do Reich de Mil Anos ou pelos imperativos da construção do socialismo.


Fatalidade ou crime?


Na tarde da quarta-feira 19, a garçonete Rita Aparecida dos Santos, de 50 anos, ainda fazia os cálculos das perdas sofridas durante o incêndio que atingiu a favela do Moinho, no centro de São Paulo. Metade do barraco de madeira foi completamente consumida pelas chamas, mas os bombeiros conseguiram salvar o banheiro e um quartinho apertado, onde ela tratava de ajeitar os poucos pertences resgatados. Panelas e utensílios de cozinha, em sua maioria.

Perdi fogão, geladeira, televisão e a maior parte das roupas. Na hora em que ouvi a gritaria, o fogo já tava no meu telhado. Só deu tempo de acordar meu marido e pegar alguns documentos”, conta, com o cachorro Alex a tiracolo, um pouco chamuscado nas patas traseiras. 

Aqui eu não fico mais. É o segundo incêndio em menos de um ano. Não vou esperar o terceiro”, conclui, com o olhar perdido para os escombros.

A favela do Moinho fica debaixo do viaduto Orlando Murgel e às margens de uma linha de trens metropolitanos. Em dezembro do ano passado, um incêndio de grandes proporções destruiu um terço da comunidade e deixou ao menos 200 desabrigados. Duas pessoas morreram. Desta vez, as chamas mataram um homem, destruíram 80 barracos e abalaram a estrutura do viaduto, parcialmente interditado. Os bombeiros foram chamados às 7h08 da segunda-feira 17 e só conseguiram controlar o fogo cerca de uma hora e meia depois.

A tragédia é atribuída a uma briga de casal. A polícia prendeu o travesti Fidélis Melo de Jesus, de 37 anos, conhecido como Eliete, que teria ateado fogo no companheiro. Ambos eram usuários de crack.
A polícia trata o caso como uma fatalidade originada de um crime passional. 

Mas a versão não convence a todos. Segundo as primeiras informações passadas pelos bombeiros, havia três focos de incêndio na favela, distantes cerca de 50 metros um do outro. “Curioso notar que os moradores vitimados são os mesmos que há 15 dias tinham relatado a ocorrência de forte pressão psicológica por parte da municipalidade, que exigia que esses moradores deixassem o local até outubro”, afirma uma nota da Associação de Moradores do Moinho. 

Outra dúvida que cerca esse novo episódio se refere aos três focos iniciais de incêndio, pondo em dúvida a versão apresentada de briga de viciados em drogas.”
Segundo Francisco Miranda, presidente da entidade, desde 2006 a prefeitura tenta remover a favela, onde vivem 532 famílias, que totalizam 1.656 moradores, segundo dados do IBGE. Enquanto a administração municipal tenta desapropriar a área e utilizá-la para outros fins, os habitantes buscam conquistar o direito de permanecer no local.
 “Estamos lutando para que o poder público ofereça opções de moradia aqui mesmo, na região. Mas a prefeitura insiste em oferecer bolsa aluguel, indenizações irrisórias ou a promessa de um apartamento, só que longe daqui.”

Rita dos Santos decidiu abandonar tudo após a tragédia.
Foto: Isadora Pamplona 
Funcionário de uma confecção no Bom Retiro, Antonio Bezerra da Silva, de 42 anos, teve parte da casa destruída com o recente incêndio e reforça as desconfianças. “Não posso dizer que alguém veio aqui e tocou fogo nos barracos para nos obrigar a sair. Mas uma coisa é verdade: a prefeitura se aproveita da situação para interditar a área e forçar o pessoal a sair”, diz. 
Eu tive sorte, o fogo só atingiu o telhado. Mas e os meus vizinhos que perderam tudo, vão para onde?”

A situação preocupa o promotor de Habitação e Urbanismo da capital, José Carlos de Freitas, que pediu aos seus colegas do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) para investigar a onda de incêndios em favelas. “O número de casos é assustador. Além disso, chama a atenção que a maioria dos incêndios ocorre em comunidades que estão no caminho de alguma obra pública ou numa região em que o mercado imobiliário tem interesse de construir empreendimentos para a classe média ou a população de alta renda.” 

A Câmara dos Vereadores instalou uma CPI para investigar esses episódios, mas pouco foi apurado em pleno ano eleitoral.
De acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o recente incêndio na comunidade do Moinho foi o 69º do ano. Entre 2005 e 2011, o Corpo de Bombeiros registrou 849 ocorrências em favelas paulistanas. A fria análise dos dados oficiais permite supor que, ano a ano, o número de casos tem diminuído. 

Mas a urbanista Lucila Lacreta, diretora técnica do Movimento Defenda São Paulo, alerta que a simples contagem de episódios pode esconder a real dimensão do problema. “Uma ocorrência pode deixar centenas de casas destruídas e milhares de desabrigados. Outra pode dar conta de apenas dois barracos queimados. Certo é que eu nunca vi ser noticiado, num intervalo de tempo tão curto, incêndios tão devastadores como os de agora”, afirma a especialista. “Não há terrenos disponíveis no centro expandido e muitos têm interesse nas áreas ocupadas irregularmente.
Em menos de um mês, foram cinco incêndios de grandes proporções na capital. Em 3 de setembro, 1,1 mil pessoas ficaram desabrigadas após a destruição de 290 barracos na favela Sônia Ribeiro, conhecida como Morro do Piolho, na zona sul de São Paulo. Na ocasião, o próprio prefeito, Gilberto Kassab, admitiu a possibilidade de o incêndio ter sido criminoso: “Existe a suspeita de que o fogo possa ter sido provocado, como, aliás, ocorreu em outros casos”.
Moradores do Moinho não acreditam que os dois incêndios foram fatalidades.
Foto: Isadora Pamplona
 

Desconfiança.
Dois dias antes, um incêndio destruiu parte de uma comunidade na Vila Brasilândia, na zona norte da capital. Em 28 de agosto, ao menos 55 barracos de uma favela de São Miguel Paulista, na zona leste, foram destruídos pelas chamas. Menos de uma semana antes, outra favela na Vila Prudente, também na zona leste, pegou fogo. Cerca de 150 moradias foram destruídas.
João Finazzi, pesquisador do Programa de Educação Tutorial do curso de Relações Internacionais da PUC-SP, recentemente publicou um artigo que comprova o que boa parte dos urbanistas denuncia há tempos. Primeiro, ele verificou a distribuição das mais de 1,5 mil favelas existentes no território paulistano. Depois, mapeou as ocorrências de incêndio mais recentes (São Miguel, Alba, Buraco Quente, Piolho, Paraisópolis, Vila Prudente, Humaitá, Areão e Presidente Wilson). 
O episódio na favela do Moinho só ficou de fora porque o artigo foi escrito antes da tragédia. Conclusão: as chamas atingiram regiões que concentram apenas 7,28% das favelas da cidade. Em outras áreas, que concentram mais de 21% dos assentamentos irregulares da capital, como Capão Redondo, Jardim Ângela, Campo Limpo e Grajaú, nenhum incêndio foi registrado.
O estudo, coordenado pelo professor Paulo Pereira, identificou ainda que as áreas atingidas pelos incêndios sofreram grande valorização imobiliária entre 2009 e novembro de 2011, segundo a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). “Todas as nove favelas citadas estão em regiões de valorização imobiliária: Piolho (Campo Belo, 113%), Vila Prudente (ao lado do Sacomã, 149%) e Presidente Wilson (a única favela do Cambuci, 117%). Sem contar com Humaitá e Areião, situadas na valorizada Marginal Pinheiros, e a já conhecida Paraisópolis, vizinha incômoda do rico bairro do Morumbi”, afirma Finazzi. 
Onde não houve incêndio, a valorização imobiliária foi bem menor nos últimos anos, em alguns casos até decrescente, como Grajaú (-25,7%) e Cidade Dutra (-9%)”.
Para o urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Pólis, a casuística é realmente estranha. “Precisamos ampliar essa análise estatística, mas é muita coincidência só pegar fogo nas favelas mais bem localizadas”, afirma. 
Há uma forte demanda por moradias na capital paulista, impulsionada pelo crédito imobiliário farto, e não restam muitos terrenos disponíveis. Também há o preconceito da classe média, que vê as favelas como algo que deprecia o bairro e diminui o valor dos seus imóveis. As autoridades precisam estar atentas.”
Responsável pela abertura do inquérito que investiga as circunstâncias do incêndio no Morro do Piolho, o promotor Freitas encaminhou ao Gaeco duas outras denúncias curiosas. Em um dos casos, um fiscal da prefeitura teria oferecido indenizações de 15 mil reais para moradores saírem de uma comunidade em Jurubatuba, sob a alegação de que passaria uma obra pública no local. Ocorre que a prefeitura não tinha qualquer projeto para aquela área. Em vez disso, uma grande construtora é que teria o interesse de remover as famílias para erguer um empreendimento. Em outro caso, moradores da Rocinha Paulistana, que deverá ser removida para a construção de um túnel, denunciaram a atuação de criminosos que incendiavam barracos desocupados para obter indenizações do município.
Esses episódios só refletem a falta de habilidade do poder público em resolver o déficit habitacional. Primeiro, as autoridades são coniventes com as ocupações irregulares, por vezes em áreas de risco. Depois, tentam solucionar o problema com indenizações irrisórias ou moradias em bairros afastados”, diz Freitas. “Mas, se ficar comprovado que algum desses incêndios teve a intenção de forçar a remoção daquela população, os responsáveis serão denunciados e punidos.”

por Rodrigo Martins


Comentário do Senhor C.:

- A julgar pelos fatos e pelas informações que tem cheiro de queimado nestes incêndios, tem. E muito! E devem estar queimando a insensibilidade e a falta de políticas públicas habitacionais do atual governo paulistano, além do cinismo e da cara de pau de alguns candidatos a sucede-lo que nem tocam na questão!


sábado, 22 de setembro de 2012

Perguntas impertinentes




Homenagem a um pensador que se foi

Carlos Nelson Coutinho (1943 - 2012)
Um divulgador de Gramsci entre nós.

Morreu nesta quinta-feira (20), o filósofo e cientista político Carlos Nelson Coutinho, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Militante do PCB por muitos anos, desde a juventude, Carlos Nelson escreveu mais de uma dezena de livros e deixa um legado amplo na área da produção cultural e também na área política. Uma original articulação de Lukács e Gramsci estruturou seu trabalho nos últimos anos até o livro mais recente "De Rousseau a Gramsci. Ensaios de teoria política", publicado em 2011.

Luiz Sérgio Henriques - Gramsci e o Brasil

Nascido em Itabuna, na Bahia, em 1943, morreu nesta manhã de 20 de setembro, no Rio de Janeiro, o filósofo e cientista político Carlos Nelson Coutinho. Professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde lecionava na Escola de Serviço Social, Carlos Nelson deixa um legado amplo na área da produção cultural e também na área política.

Militante do PCB por muitos anos, desde a juventude, Carlos Nelson escreveu mais de uma dezena de livros, a começar por Literatura e humanismo, lançado no final dos anos 1960 pela Editora Civilização Brasileira, de Ênio Silveira. Em Literatura e humanismo, já estão presentes algumas qualidades que o distinguiriam nos anos seguintes, como a clareza de pensamento, a escrita elegante e a percepção refinada de autores fundamentais, como atesta o ensaio sobre Graciliano Ramos. Também neste livro inaugural está presente a influência decisiva do filósofo húngaro Georg Lukács, cujas ideias sobre o realismo norteavam as pesquisas do então jovem crítico brasileiro.

Nos anos 1970, Carlos Nelson conheceu o exílio em Bolonha — terra em que se afirmara por décadas o seu amado Partido Comunista Italiano, outra das referências político-intelectuais imprescindíveis para entender o nosso autor — e, posteriormente, em Paris. Foi membro eminente do “grupo de Armênio Guedes”, que, dentro do PCB, buscava a renovação do nosso comunismo a partir da questão democrática, vista — a democracia — também como a alternativa mais produtiva aos caminhos e descaminhos da modernização “prussiana” do capitalismo brasileiro, que havia conhecido um novo impulso a partir da ditadura implantada em 1964.

Neste sentido, Carlos Nelson se notabilizou, já na volta do exílio, pelo ensaio “A democracia como valor universal”, fortemente inovador na cultura comunista, exatamente por ter como assumida fonte de inspiração o pensamento político amadurecido em torno do antigo PCI, muito especialmente Enrico Berlinguer e Pietro Ingrao. Difícil subestimar o papel deste ensaio, sobre o qual, posteriormente, o próprio autor se voltaria em diferentes ocasiões, ratificando-o e retificando-o em variados pontos: esta é, precisamente, a função de um ensaio seminal.

A partir deste momento, incorpora-se vigorosamente à reflexão de Carlos Nelson a presença de Antonio Gramsci: pode-se dizer que, a partir de uma original articulação de Lukács e Gramsci — isto é, dos problemas da ontologia do ser social e da política tal como experimentada nos países “ocidentais” —, tenha se estruturado a produção posterior de Carlos Nelson Coutinho, até o livro mais recente, De Rousseau a Gramsci. Ensaios de teoria política, publicado em 2011.

Nos últimos meses, mesmo abalado pela doença, Carlos Nelson dedicava-se a uma história da filosofia, testemunho da enorme erudição e inquietação intelectual que o acompanhou por toda a vida. Nos anos 1980, com a crise do PCB e o afastamento de grande parte dos “eurocomunistas” brasileiros, Carlos Nelson passaria pelo PSB (expressão do seu interesse pelo socialismo democrático, uma vez que o PSB de Carlos Nelson era aquele histórico, do pós-1945, marcado por figuras como Hermes Lima e João Mangabeira), pelo PT e, a partir de 2003, pelo PSOL. Estas opções políticas, naturalmente, deixaram marca na produção teórica do nosso autor, que está destinada a ser tema de estudos e reflexões por parte de todos aqueles que se preocupam com o destino do humanismo, da democracia e do socialismo no nosso tempo.

(*) Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.


sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O xadrez jurídico de Lewandowski expõe hipocrisia dos "garantistas" do STF



Por Jotavê

Ontem, o ministro Lewandowski fez basicamente duas coisas. Em primeiro lugar, obrigou o Supremo a reconhecer explicitamente algo que estava apenas implícito no discurso dos demais ministros: houve uma mudança na jurisprudência. Ao citar um voto do ministro Celso de Mello num processo anterior, Lewandowski deixou evidente que os critérios para o reconhecimento da corrupção passiva se alargaram. 

Como o ministro ressaltou, esse alargamento não tem nada a ver com a "exigência de ato de ofício", como se antes fosse exigida a comprovação da prática de tal ato. O que se exigia antes (e não se exige mais) é a comprovação de um vínculo efetivo (e não meramente abstrato, virtual) entre o recebimento presente e o ato futuro. Quem recebe a vantagem, pela interpretação antiga, deveria de algum modo sinalizar a disposição de agir de tal e tal modo no exercício de seu cargo de modo a retribuir a vantagem indevida que está recebendo. Pela nova interpretação, a comprovação desse vínculo tornou-se dispensável. Se Fulano recebeu dinheiro indevido e existe a perspectiva (por abstrata que seja) de um favorecimento em função do cargo que ocupa, então Fulano corrompeu-se, e ponto final.

Foi nesse momento que Lewandowski realizou um primeiro lance genial, que exigirá no mínimo um grande esforço intelectual de seus pares no sentido de planejar a reação correta. Ele ACATOU a nova jurisprudência firmada por seus pares, e CONDENOU o réu Pedro Correia com base nela. A denúncia evidenciou que Pedro Correia (i) recebeu o dinheiro e (ii) tinha, em função do cargo que exercia, a possibilidade de retribuir futuramente essa vantagem indevida, pouco importando aqui se retribuiu ou não, ou mesmo se tinha ou não a intenção de retribuir. 

Como Lewandowski bem disse, estava condenando Pedro Correia porque ele recebeu o dinheiro de Marcos Valério e, além disso, "era parlamentar", e isso basta. O efeito dessa condenação, feita sobre essas bases, podia ser sentida no rosto da maioria dos ministros. Joaquim Barbosa era o único que estava perfeitamente à vontade. Ele sempre foi a favor de interpretações mais duras da legislação penal. Em 2009, por exemplo, foi ele o maior defensor de que réus condenados em segunda instância aguardassem recursos ao Supremo na cadeia. Foi voto vencido num Tribunal "garantista", que põe os direitos individuais sempre acima dos direitos da coletividade. À frente dessa "tropa garantista" estavam exatamente Gilmar Mendes e Celso de Mello. 

Citando o voto anterior do ministro Celso de Mello, que defendera até pouco tempo critérios "garantistas" para a caracterização da corrupção passiva, e declarando que ele próprio, Ricardo Lewandowski, modificava seu entendimento em função da nova jurisprudência firmada por aquele colegiado, citando o voto de cada um dos colegas, e dando destaque especial à nova posição do ministro Celso de Mello, ele obrigou o plenário a assinar o recibo da mudança que se estava operando ali, naquele julgamento, e fez isso de forma inatacável - modificando "humildemente" sua própria posição a respeito, e dando por assentada a nova "jurisprudência" firmada pelo STF. É tuo que Celso de Mello e Gilmar Mendes não queriam - serem obrigados doravante a usar o mesmo peso e a mesma medida do mensalão em casos assemelhados.

Veio, então, o segundo lance genial da tarde de ontem: a absolvição de Pedro Henry por falta de provas. O que Lewandowski argumentou é que não houve individualização da responsabilidade de Pedro Henry nos crimes que lhe eram imputados. Eles estava sendo condenado, segundo o ministro, simplesmente por ser presidente do PP, e porque o Procurador "presumiu" que, sendo presidente de um dos partidos beneficiados pelo esquema, Pedro Henry deveria estar no topo da "organização criminosa". Lewandowski citou diversos trechos da denúncia, mostrando que jamais se demonstrava ali que Pedro Henry, individualmente, havia praticado tal ou qual ilícito. Ele foi incisivo ao afirmar que a denuncia não individualiza os delitos atribuídos a Pedro Henry em NENHUM momento. 

O desafio que ele lançava a seus colegas era claríssimo, e todos o entenderam perfeitamente bem. "Abandonamos a antiga interpretação garantista do crime de corrupção passiva. Vamos também abandonar, agora, esse princípio básico do direito penal, que é o da individualizaçã da culpa?". Mais ainda. Seu voto dizia, nas entrelinhas, algo que ficará ressoando na segunda parte dessa "fatia", quando forem julgados José Dirceu e José Genoíno: a partir de agora, o STF entende que basta ocupar um certo lugar na hierarquia de um partido para automaticamente ser responsabilizado por ações praticadas no âmbito daquele partido? É esse o desafio que os "garantistas" do Supremo terão que enfrentar. 

São essas as questões que Lewandowski, com seu voto, os obrigou a responder. Estavam lívidos. As câmeras da TV Justiça, sempre tão circunspectas, foram obrigadas a percorrer os semblantes boquiabertos dos ministros. Joaquim Barbosa, apesar das hemorróidas, estava confortabilíssimo em sua poltrona.

Foi, até agora, o lance mais profundo e mais fino dessa belíssima partida de xadrez disputada entre Joaquim Barbosa, de um lado, e Ricardo Lewandowski, do outro. Não porque, repito, o voto de Lewandowski tenha colocado em xeque as posições de Joaquim Barbosa. Esse talentoso e implacável promotor está onde sempre esteve, com toda a legitimidade - na defesa de uma interpretação mais dura da legislação penal, que não facilite tanto a vida dos infratores. 

Os demais juízes é que ficam, agora, em posição incômoda. Afinal, até antes de ontem, estavam expedindo habeas corpus para garantir os direitos de um banqueiro que subornava policiais, e protestando contra o uso de algemas em acusados que não estivessem trajando bermuda e havaianas no momento da prisão, nem tivessem entrado no camburão com o olho já carimbado por um hematoma. A hipocrisia do "garantismo" do Supremo está com as vísceras expostas sobre a mesa.

Grande Lewandowski!


Onde está o dinheiro?



PAULO MOREIRA LEITE


Neste momento, o quadro do julgamento do mensalão parece claro. Joaquim Barbosa sustenta aquilo que o ministério público define como “organização criminosa” dedicada a ”comprar” votos para o governo. Não há apoio político. Não há verba de campanha. Há “propina”, diz Joaquim Barbosa.

O voto de Joaquim merece elogios e reconhecimento. É um voto competente, bem articulado e coerente. Não faltam exemplos nem casos. Discordo de seu esforço para criminalizar a atividade política. Fala em “interesse dos corruptores” para definir a ação da bancada do governo no Congresso. Toda partilha de verbas é definida como “vantagem indevida.” Este é o preço que ele paga pelo esforço em despolitizar uma discussão que é politica em todos os sentidos.

Mas é preciso admitir que Joaquim Barbosa está inteiramente convencido daquilo que diz. Não faz teatro nem joga. Não quer agradar a mídia – embora, em grande maioria, ela esteja adorando o que ele diz e sustenta. Isso lhe garante um tratamento positivo. Ao contrário do que ocorria em passado recente, quando Joaquim entrou em choque com Gilmar Mendes.

A julgar pelo aconteceu até agora, parece claro que, salvo casos menores, os réus mais importantes – como José Dirceu, Delúbio Soares, José Genoíno – têm grandes chances de serem condenados a penas severas.

Está tudo resolvido? Não acho.
Até agora não encontrei uma única notícia do dinheiro que, desviado no Visanet, e também junto a empresários, nem todos chamados a sentar-se no banco dos réus, foi recolhido pela “organização criminosa”. Não acho uma notícia irrelevante.
É frustrante. Como dizia o editor do Washington Post, o jornal do Watergate, ao estimular seus repórteres: ”Follow the money”

Os petistas dizem que foram recursos para campanha, em especial para as eleições municipais de 2004. As 317 testemunhas ouvidas no inquérito dizem a mesma coisa. A leitura do relatório da Polícia Federal – que descreve com maestria o milionário desvio no Visanet – não contém uma palavra sobre isso. Diz textualmente que foi possível encontrar a origem mas não se chegou ao destino do dinheiro.

Joaquim diz e repete, ora com ironia, ora com indignação, mas sempre com fatos e argumentos, que não acredita que os recursos se destinavam a campanha eleitoral. Rosa Maria Weber, em seu primeiro voto, declarou que achava essa informação irrelevante.

Eu acho que o debate é mais importante do que parece. Ele permite demonstrar quem avançou o sinal, quem não fez o combinado pelas regras informais de nosso sistema político.

Isso não diz respeito apenas ao julgamento de hoje, mas ao funcionamento da democracia no país. Nossas eleições são limpas há muito tempo porque são disputadas numa ambiente de liberdade, no qual cada eleitor pode fazer sua escolha sem pressões indevidas.

Os pleitos expressam a vontade popular e não vejo nenhum motivo para suspeitar de seus resultados. Não há votos comprados nem fraudados em escala significativa.

Mas depois de PC Farias, o saudoso tesoureiro de Fernando Collor, nós sabemos que é preciso ser muito hipócrita para fingir que o financiamento de campanha, de qualquer partido, antes e depois do mensalão, é uma operação limpa. Ali se mistura o caixa 2 de empresas, o dinheiro da corrupção, e também o dinheiro que, mesmo de origem quente, precisa ser esfriado no meio do caminho.

Se houvesse vontade política para corrigir as imensas imperfeições e desvios, isso já teria sido feito. Mas sempre que surge essa oportunidade, ela é barrada por falta de interesse político. É mais interessante tirar proveito de uma denuncia em vez de procurar a origem dos erros. O mais recente projeto de reforma eleitoral, elaborado pelo deputado José Fortunatti, do PT gaúcho, foi sabotado alegremente pela oposição no ano passado. Previa, como nós sabemos, o financiamento público exclusivo de campanha, que proíbe a ação dos corruptores na distribuição de verbas para os partidos. Não há lei capaz de impedir a prática de crimes. Mas uma boa legislação pode desestimular as más práticas. Pode criar regras realistas e não um mundo aberto para falcatruas e irregularidades. A mesma oposição que agora pede guilhotina para os petistas é a primeira a manter as regras que alimentam o ambiente de abuso e desvio.

Este é o jogo do moralismo. Joaquim Barbosa pode não fazer jogo.

Mas ele existe e está aí, à frente de todos.

Após sete anos de investigação, não se encontrou um rastro do dinheiro. Você pode achar que os recursos foram lavados e se perderam nos esquemas de doleiros e enviados para o exterior. Também pode achar que foram lavados e entregues aos partidos aliados do PT, como disseram os advogados da defesa nas já longínquas manifestações dos primeiros dias.

O certo é que a Justiça quebrou o sigilo bancário e fiscal dos acusados e nada encontrou. O rastreamento não levou a nada. Não há sinal de enriquecimento indevido no patrimônio de nenhum dos réus.

Não tenho procuração para atestar a honestidade de ninguém. (Só a minha).
Mas não é estranho que não apareça um centavo gasto de forma ilícita?

Como é que o tesoureiro Delúbio Soares continua morando no mesmo flat modesto no centro de São Paulo?
Por que José Genoíno, combatente brasileiro que sempre irá merecer homenagens pela coragem de assumir as próprias ideias, muitas inconvenientes a seus interesses, continua residindo na mesma casa no Butantã, em São Paulo?
Apontado como chefe da “organização criminosa”, falta explicar o que Dirceu obteve com seus superpoderes de ministro-chefe da Casa Civil.

Também falta outra coisa. O Visanet é um caso comprovado de troca de favores com dinheiro público. Mas outros casos são fiascos. Marcos Valério cansou de prometer o que não podia entregar. Não foi só o Banco Mercantil. Um assessor dele me garante que Valério prometia até entrar na negociação da licitação da transposição do São Francisco. As obras – que seguem a passo de tartaruga — acabaram com os militares. É certo que oferecer vantagem indevida já é crime. Mas vamos combinar que não é a mesma coisa.

Com seu voto articulado, com exemplos e histórias, Joaquim Barbosa está levando o julgamento. As descrições e diálogos ajudam a dar dramaticidade a seu voto.
Mas é uma questão de convicção e convencimento. Pela jurisprudência que parece dominar a maioria do STF, estes elementos parecem suficientes.

Concordo que ninguém chama fotógrafos para receber uma mala de dinheiro. Mas o bom senso recomenda admitir que a recíproca não pode ser verdadeira. A falta de provas não pode ser desculpa para condenação apressada e portanto errada.
Essa distinção separa a justiça do moralismo, recurso típico daquelas forças que tem dificuldade de conviver com a democracia e procuram atalhos para escapar da soberania popular.

Apontado como mensaleiro porque recebeu um cheque de 100 000 reais de Marcos Valério para sua campanha, o deputado Roberto Brant, do DEM mineiro, foi absolvido pelo Congresso por uma votação folgada. Não foi indiciado no mensalão, embora até pudesse, não é mesmo?

Bom político, lúcido e corajoso, Brant explicou, certa vez, ao jornalista Sérgio Lirio que o moralismo interessa “aos gru­pos que con­tro­lam o Es­ta­do bra­si­lei­ro, in­de­pen­den­te­men­te de quem es­te­ja no go­ver­no. São her­dei­ros dos pri­vi­lé­gios se­cu­la­res que o Es­ta­do dis­tri­bui. A so­cie­da­de bra­si­lei­ra é in­jus­ta des­sa for­ma por­que o Es­ta­do é um agen­te da in­jus­ti­ça. Es­ses gru­pos não que­rem re­for­ma de coi­sa ne­nhu­ma. O mo­ra­lis­mo só in­te­res­sa aos gru­pos que que­rem mo­bi­li­zar o Es­ta­do bra­si­lei­ro, ou pelo me­nos o sis­te­ma po­lí­ti­co bra­si­lei­ro, para não dei­xar que ele ope­re com li­ber­da­de. 

Isso já acon­te­ceu ou­tras ve­zes. Quan­do o Jus­ce­li­no (Ku­bits­chek) co­me­çou a mu­dar o Bra­sil, aqui­lo as­sus­tou tre­men­da­men­te as eli­tes ur­ba­nas. O re­sul­ta­do foi a cria­ção de uma sé­rie de es­cân­da­los que a his­tó­ria pro­vou ser com­ple­ta­men­te in­fun­da­da, in­con­sis­ten­te e fal­sa. To­dos os per­so­na­gens mor­re­ram po­bres. De­pois veio o quê? Jâ­nio Qua­dros, apoia­do pela opi­nião pú­bli­ca. Opi­nião cons­truí­da pelo (jor­na­lis­ta Car­los) La­cer­da, pela UDN nos gran­des cen­tros ur­ba­nos. Em São Pau­lo, in­clu­si­ve. Foi lá que ele ven­ceu. E deu no quê? De­sor­ga­ni­za­ção, po­pu­lis­mo e aven­tu­ra. De­pois do Jâ­nio, veio o gol­pe mi­li­tar. Como ta­char de cor­rup­to um par­ti­do in­tei­ro, o sis­te­ma de for­ças in­tei­ro? Isso é fal­so. Há po­lí­ti­cos que des­viam de con­du­ta no PT, no PFL, no PSDB. A agen­da do mo­ra­lis­mo não leva a nada. Ou leva a coi­sas pio­res.”

Paulo Moreira Leite

Jornalista desde os 17 anos, foi diretor de redação de ÉPOCA e do Diário de S. Paulo. Foi redator chefe da Veja, correspondente em Paris e em Washington.